Gabriel Garcia Marquez iniciou o discurso em Estocolmo de aceitação do Prémio Nobel da Literatura de 1982, com todo um parágrafo dedicado a António Pigafetta. Ele é apresentado assim pelo escritor daquele realismo mágico que é 100 anos de solidão:
"Pigafetta é o navegador florentino que acompanhou Fernão de Magalhães na primeira viagem em volta do mundo" (entra aqui um parentesis –, para meio atrapalhado anotar uma imprecisão do grande Gabo – de facto deveria ter dito que a viagem foi de Magalhães mas também do basco Elcano, como o elogiado Pigafetta tão bem narra).
Acrescenta com precisão Garcia Marquez no discurso Nobel: "O relato de Pigafetta no breve e fascinante livro 'Relato da Primeira Viagem em Torno do Mundo' é um assombroso testemunho da realidade daqueles tempos – e é uma semente para os relatos nos romances do nosso tempo."
Pigafetta é um dos 240 marinheiros que em 1519 partiram da Andaluzia na expedição com 5 navios sob o comando do visionário português Fernão de Magalhães e é um dos 18 que no único navio que ficou a salvo – regressou 3 anos depois ao ponto de partida.
A crónica por Pigafetta desses 3 anos de viagem – é uma crónica que supera a mais audaz imaginação – relata sofrimentos, rebeliões, traições, doenças, escorbuto, canibalismos, combates com tribos nativas, fome, bruxarias, povos estranhos, faunas e floras extraordinárias.
Pigafetta também contou nesse relato de há 5 séculos como aquela expedição com incríveis protagonistas, com, 2 comandantes, primeiro o português Magalhães e, depois de este ter sido morto, o basco Elcano, navegou 72 mil kms – sulcando 3 oceanos o Atlantico, o Pacifico e o Indico – circumnavegou o mundo e provou que este é redondo.
Num dia como o de hoje, na última semana de novembro, mas há exatamente 501 anos – já só restavam 3 dos 5 barcos que 15 meses antes tinham zarpado da Andaluzia
Magalhães continuava a ser o comandante, continuavam a navegar para poente, em busca das terras das especiarias, e após 36 dias de mar de tempestade, no estreito entre a Patagonia, sul do Chile a ilha grande da terra do Fogo, as 3 naus, a vitoria, a concepcion e a trinidad concretizavam a ambição: chegar ao Oriente por ocidente, e assim aquele ficou para sempre batizado – o estreito de Magalhães.
Seguiram por mar encrespado para o arquipélago de São Lazaro, Filipinas, e aí chegaram à ilha Moluca – o lugar onde Fernão de Magalhães foi morto, num episódio que Pigafetta descreve com fervor: "Os índigenas lançaram-se sobre ele com espadas e machetes, usaram todas as armas que tinham e acabaram com ele, (escreve ainda Pigafetta) o nosso espelho, a nossa luz, o nosso consolo, o nosso verdadeiro guia".
O relato de Pigafetta também é uma fonte para o popular austríaco Stephem Zweig, que nos anos 30 do século passado, a viver no Brasil, escreveu as 320 páginas do livro 'Magalhães, o homem e o seu feito' (editado em Portugal pela Assírio e Alvim) em que Magalhães é definido como empreendedor e líder, minucioso ao extremo, paciente e determinado.
Zweig escreve, a partir dos relatos que procurou, que a odisseia iniciada por Magalhães e completada por Elcano é a “viagem marítima talvez mais terrível alguma vez realizada, cheia de privações e que documenta a capacidade humana de sofrimento”.
Inspira-se certamente na crónica de bordo de Pigafetta que conta por exemplo como durante 3 meses e 20 dias nunca puderam comer alimentos frescos – e esta fome por entre tempestades, escorbuto a bordo e combates com tribos indígenas quando chegavam a alguma terra.
Bem explicou nesse tempo Pedro Nunes: os nossos mareantes partiam mui ensinados e providos de instrumentos e regras de astrologia e geometria.
É assim que foi conseguida há 5 séculos a primeira volta ao mundo
O cronista Pigafetta sobreviveu a todas as tormentas para nos deixar a crónica da odisseia – que também é uma historia da capacidade humana para resistir ao sofrimento.