Ditadura, em Portugal, tem um tempo: 48 anos a meio do século XX, entre 1926 e 1974.
Tem esse tempo e um nome: Salazar. António de Oliveira Salazar.
Foi o chefe ao longo de 36 dos 48 anos.
Nos primeiros 6, o tempo de um golpe militar que pôs termo à Primeira República, Salazar já pairava, mas como austero ministro das finanças.
Em 32, acabou a ditadura militar e começou a ditadura de Salazar, resumida no slogan "Deus, Pátria, Autoridade".
Salazar foi de facto o chefe de um regime de polícia política, sem liberdade de expressão, com censura à imprensa, com prisão e até execução de opositores, com a recusa da descolonização a implicar 13 anos de trágica guerra colonial.
Salazar foi o todo poderoso presidente do conselho de ministros entre 1932 e 1968. O governo dele acabou quando ele caiu de uma cadeira quando o calista lhe tratava os pés.
O regime ainda durou, decrépito, mais 6 anos, até os militares conduzirem um golpe, raro por ser feito para dar o poder aos civis e substituir a ditadura por uma democracia, ainda que nos primeiros meses com alguns desvios totalitários.
Vários livros tratam a figura de Salazar.
O jornalista italiano Marcello Sacco já tinha escrito, há 6 anos, um livro em que em 90 páginas conta o que dá titulo ao relato: "Salazar: ascensão e queda de um ditador técnico".
Agora, Marco Ferrari, jornalista, escritor com uma dezena de livros publicados – um deles com foco em Timor, também argumentista de um filme premiado em Locarno, acaba de publicar em Itália uma história em 208 páginas também sobre Salazar: "A incrível história do ditador que morreu duas vezes".
O foco está na realidade conhecida, as consequências da queda sofrida por Salazar da cadeira onde estava, em 3 agosto de 68 num terraço do agora renovado forte de Santo António da Barra, no Estoril: primeiro, um hematoma subdural intracraniano, depois um AVC, tudo a colocá-lo sob observação, cuidado e parecer de (contaram) 58 médicos.
O agravamento do quadro clinico com o cérebro de Salazar a não dar resposta tornou imperiosa, no final de setembro daquele 68, a substituição de "sua excelência o presidente do conselho de ministros de Portugal".
Entrou Marcelo Caetano, que logo se apresentou "homem comum a suceder ao homem providencial".Só que, entretanto, Salazar despertou do sono profundo, que parecia definitivo.
Marcelo Caetano, que assumiu o país após António de Oliveira Salazar. Source: Wikipedia -- Creative Commons
Acordou com funções intelectuais muito diminuídas, mas com algum grau de lucidez, e então começou – é aqui que o relato no livro cresce na encenação teatral - o que Marco Ferrari carateriza como "uma manobra cínica planeada com pérfida genialidade".
Isolaram o então octogenário Salazar no palácio do governo e organizaram tudo dentro desse palácio de S. Bento, aquele onde funciona a residência do chefe do governo, logo ao lado do parlamento, para que ele continuasse convencido que tudo seguia como antes, com ele à cabeça do Estado português.
É o que Ferrari chama de Truman Show politico com o protagonista em supina ignorância da realidade.
Ferrari neste livro "A incrivel história do ditador que morreu duas vezes" retrata o Salazar que de facto governou ao longo de de 36 anos: reconhece-lhe habilidade para conseguir que o regime hermético que inventou
sobrevivesse à queda dos nazifascismos, mas descreve-o uma espécie de contabilista que se fez economista,
astuto mas sempre rural, sempre introvertido, um homem que no século 20 não fuma, não viaja, bebe pouco,
sexualmente ao mesmo tempo casto e libidinoso e que detesta tudo o que não sabe como controlar: a multidão, o cosmopolitismo das cidades, até o mar – os oceanos – tanto que no papel mandante sobre um vasto império se limitou a contemplá-lo a partir de casa.
Vá lá, a partir daquele terraço do Estoril onde veio a acontecer a queda que teve como sequela as duas mortes, a morte da realidade para Salazar em 69 e a realidade da morte em 1970.
Faz neste julho meio século.
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