A australiana Alison Entrekin está entre os principais tradutores de literatura em português para o inglês, com foco em obras brasileiras. Em seu eclético currículo, Alison já mostrou ao mundo anglófono os livros Cidade de Deus, de Paulo Lins, Perto do Coração Selvagem, de Clarice Lispector, Budapeste, de Chico Buarque, O Filho Eterno, de Cristovão Tezza, e Barba Ensopada de Sangue, de Daniel Galera, entre outros. Tudo isso além de pequenas ficções, poesia e livros infantis.
Agora, Alison Entrekin está debruçada sobre um projeto complexo, ousado e que levará anos: a tradução de um dos maiores clássicos da literatura em português, e que não poucas pessoas defendem ser também uma das maiores obras da literatura mundial: o Grande Sertão: Veredas, do mineiro Guimarães Rosa. Uma obra de contexto muito particular, repleta de neologismos, marcada profundamente por seu tempo, por seu autor e pelo ambiente do sertão de Minas Gerais.Alison Entrekin conversou conosco de Perth, costa oeste da Austrália, onde vive.
Alison Entrekin Source: Supplied
Ela viveu no Brasil por 24 anos e lá se formou tradutora, e retornou à Austrália Ocidental em 2020, onde havia estudado Criação Literária na faculdade. E a tradução de obras brasileiras passou a ser sua vida - primeiro para conhecer melhor, depois, se firmando como uma das principais tradutoras de obras brasileiras ao inglês.
Para ela, o trabalho de tradução literária passa longe de ser uma função relacionada ao texto. O conhecimento da cultura local lhe é fundamental para a transformação da obra.
"Por muito tempo não me senti à vontade traduzindo o português de outros países. Porque é mais distante, e eu não tenho imersão na cultura de outros países lusófonos. Sempre tive a sensação de que talvez estivesse perdendo alguma nuance, alguma ironia, alguma sutileza cultural".
A vastidão da cultura brasileira não passou batido para Alison Entrekin. Apesar dos problemas que assolam o país, a produção cultural e a efervescência intelectual foram pontos que marcaram sua passagem pelo gigante sul-americano.
"Eu acho o Brasil riquíssimo do ponto de vista de produção cultural. Cinema..., a música brasileira é uma coisa incrível. Tem uma vida intelectual no Brasil muito viva. Apesar dos pesares, é uma coisa que não consigo sentir aqui da mesma forma que senti lá, talvez pelo trabalho. No Brasil sempre me senti envolvida, imersa em uma discussão cultural, intelectual, sempre efervescente. Talvez pelas outras feições do país, a política e outras questões, isso se torne mais necessário."
"Eu sinto que às vezes tem países em que a vida anda de forma mais calma, as instituições são menos ameaças, e talvez por conta disso as pessoas se liguem menos na política, a discussão não seja tão à flor da pele."
Mas por que toda essa produção literária tem pouco reconhecimento internacional? Entrekin sugere algumas linhas de explicação.
"Várias traduções em décadas anteriores não foram tão bem realizadas. Não por falta de esforço dos tradutores, mas porque eram outros tempos, os recursos eram bem diferentes, o contato com a língua e a cultura não eram tão intensos. A fortuna crítica em cima de determinados autores não estava presente, estava sendo erguida. (...) Acho que também tinham os preconceitos de outros mercados literários que também influenciavam na escolha das obras a serem traduzidas e levadas a esses países, mas também as escolhas tradutórias. Às vezes tinha a questão de domesticação, ou 'estrangeirização' - o tradutor faz uma espécie de adaptação ao gosto cultural do país de chegada da obra".
Visita à Cordisburgo, Minas Gerais, para captar o espírito de Guimarães Rosa
Alison Entrekin enxerga o trabalho de tradução não apenas como uma tarefa vocabular. Sua meta é entender em profundidade o pensamento e o método do autor, e encontrar maneiras de expressá-los em língua inglesa. Com Guimarães Rosa, esse conceito ganha dimensão hercúlea, e ela, convidada a um simpósio em Cordisburgo, Minas Gerais, terra natal do autor e cenário primordial de Grande Sertão: Veredas, Entrekin pôde beber da fonte do autor, fundamental para entender a experiência da obra."Vários acadêmicos e estudiosos do Rosa falam que a chave para se entender o livro, para conseguir entrar no livro, porque você tem que passar a rebentação, é difícil no começo... você tem que botar um sotaque do sertão mineiro no ouvido para ler. E de fato, parece que traz para a oralidade e para o entendimento essa leitura com esse sotaque no ouvido. Se você não conhece a maneira de falar do povo, talvez seja mais difícil".
O Mapa de Grande Sertão: Veredas no Museu Casa Guimarães Rosa, em Cordisburgo, que Alison Entrekin conheceu na visita à terra do autor. Source: Alison Entrekin/Supplied
"Usei o tempo para fazer a escuta do lugar. Teve um momento em que fui esticar a perna, e descendo a ladeira, parei na loja do seu Brasinha, uma figura folclórica da cidade. Ele conhece Grande Sertão: Veredas de cabo a rabo. Parece um personagem saído do livro, tem uma loja de quinquilharias. (...) E lá tem uma memorabilia de coisas do livro, entre outras coisas. (...) Aí você começa a conversar com ele, e ele começa a contar histórias que são do folclore local, mas também são do livro. Lá no meio da conversa eu comecei a ficar na dúvida. É o folclore local e o Rosa bebeu nessa fonte, mas até que ponto o folclore local bebe na fonte dos livros?"
A dificuldade de se traduzir para as variantes do inglês
Assim como há várias línguas portuguesas, o inglês tem muitas variantes, o que também pode influir na tradução. Alison crê que o impacto depende do livro a ser traduzido.
"Os livros do Chico Buarque, por exemplo, são livros que têm um narrador erudito. Ele vai e volta no registro (...), é um sobe e desce, mas é uma pessoa em completo domínio da língua. Esse registro mais alto é mais fácil de traduzir, porque a tradução pode muito bem ser lida em qualquer país de língua inglesa sem problema, sem alguém reparar no sotaque, ou deixando a leitura um pouco truncada. Agora quando você trata de um livro como Cidade de Deus, que tem um registro muito baixo, gírias são interessantes, porque a gíria normalmente se localiza no tempo - e também no espaço. Pertence a um lugar e a um tempo, porque passa uma década ou duas, e vira outra coisa. Então, para fazer essa tradução é mais complicada, porque para escolher uma gíria correspondente na língua inglesa, eu posso fazer uma tradução que vai ser lida na Inglaterra ou na Austrália, e ninguém vai pestanejar com as gírias escolhidas na tradução. Mas nos Estados Unidos, talvez esta mesma tradução tenha um sotaque britânico ou australiano."
Há todo um cuidado na escolha das gírias para evitar que a obra parece se passar no destino final da tradução.
"Essas gírias muito específicas acabam criando a impressão de que a narrativa se passa lá. Então, se eu pegasse gírias americanas de lugares mais ou menos equivalentes a favelas (que na verdade não têm equivalência), a gíria iria remeter a eles, e não a alguma coisa ambientada no Brasil. Então é muito mais difícil andar nesta corda bamba, encontrar soluções - eu procurava gírias mais universais para determinadas palavras, que funcionassem tanto nos Estados Unidos quanto na Inglaterra, sem ninguém pestanejar. Justamente para não chamar atenção, não ter um sotaque marcado. Mas obviamente isso é uma missão impossível".Alison Entrekin está debruçada sobre a tradução de Grande Sertão: Veredas há alguns anos, e levará outros tantos para ver a obra em inglês com a qualidade que ela exige.
Guimarães Rosa, em viagem tropeira em 1952. Source: Wikipedia/Creative Commons - Veiculada na revista O Cruzeiro / Eugênio Silva
"Estou mirando no final de 2022. Isso para concluir de forma satisfatória a tradução, que depois passa por etapas dentro das editoras. Depois que a tradução é enviada para as editoras, elas começam a fazer sugestões, perguntas (se isso já é feito com livros mais convencionais, imagine com esse livro). Esse bate-bola vai ser grande. Então imagino que isso vá levar um ano ou mais para sair (...). Pode-se tranquilamente dizer que lá por 2024 estará disponível".