A pandemia veio revelar casos de escravatura em Portugal, entendendo como escravatura moderna o controlo ou posse de uma pessoa, retirando-lhe a sua liberdade individual, com intenção de a explorar.
A revelação destes milhares de casos de pessoas na prática escravizadas veio de uma estranheza: todo o país está bem, Portugal voltou a ser o país da Europa com melhores números no controlo da pandemia, e estaria ainda melhor se não fosse uma estranha concentração de casos na região de Odemira, no Alentejo atlântico.
Logo às primeiras investigações ficou à vista que o disparo de contágios está concentrado numa população que vive como que empilhada - chegam a ser 20 ou mais pessoas por contentor, sem condições básicas de higiene e em vida de total clandestinidade, coberta pelos gestores das propriedades rurais.
Tudo está ligado ao uso abusivo feito naquela região do Alentejo de culturas hiper-intensivas ou ultra-intensivas.
Sabia-se que havia produção excessiva de hortofrutícolas graças ao uso desmedido de fatores de produção e com abuso de mão-de-obra precária, muito barata e muito mal paga.
Sabia-se que em certas operações do montado ligado à produção de cortiça, na criação de gado, nas vindimas no Alentejo mas também no Douro e em outros cultivos intensivos, como olivais e estufas chegadas aos regadios, especialmente na área de influência do Alqueva, mas também nos perímetros do Baixo Alentejo e do Ribatejo, o uso e o abuso dos fatores de produção, das condições climáticas e são quase a regra.
E tudo acontece através da exploração da força do trabalho migrante. Sabia-se que com muitos casos de clandestinidade. Mas fechavam-se os olhos. Também não havia fiscalização por parte do Estado.
Sabia-se que estrangeiros muito pobres de diferentes origens, marroquinos, árabes, sudaneses, nepaleses, tailandeses, romenos, indianos e outros, vinham para a Península Ibérica trabalhar por qualquer preço, em quaisquer circunstâncias.
Vinham de avião, de comboio, de carro, e sobretudo de camião TIR ou de barco.
Sabia-se que havia redes de negreiros e de traficantes de gente que trazem trabalhadores desamparados de qualquer parte do mundo.
Sabia-se tudo isto mas não se assumia que a exploração de mão de obra estrangeira e desprotegida tinha a dimensão de escravatura.
Os donos desses novos escravos ficam-lhes com os passaportes, põem-nos a trabalhar sem contrato, sem cláusulas de regresso, sem bilhetes de avião garantidos e só lhes pagam, quando pagam, muito mais tarde ou nos países de origem.
É assim que agora, através da explosão de contágios, a Covid-19 tirou da clandestinidade a exploração de mão de obra imigrante nas grandes propriedades agrícolas do Alentejo, mas o fenómeno não é novo — há vários anos que nepaleses, indianos e moldavos se espalham aos milhares por todo o país rural ao ritmo da época das colheitas da azeitona, fruta, castanha, tomate, melão e até da sazonalidade da limpeza dos terrenos agrícolas.
A uni-los e a guiá-los há redes de recrutadores, muitos seus compatriotas, que os controlam com dívidas e promessas de legalização.
Tudo começa com a necessidade. A cultura intensiva leva a que, na altura da colheita, sejam precisos milhares de trabalhadores temporários numa determinada região e num espaço de tempo concentrado.
Para a contratação desta mão de obra, inexistente no local e impossível de angariar entre a população da região, os proprietários das explorações agrícolas recorrem a intermediários.
São às dezenas, no sítio certo e na altura ideal do calendário da apanha.
Os angariadores romenos contratam principalmente moldavos, e vão recrutá-los à origem, quase todos na mesma região, invariavelmente pobres.
Quanto aos originários do Nepal, da Índia e do Bangladesh: de um modo geral, já estão há algum tempo na Europa quando chegam a Portugal, mas indocumentados. Pagaram a redes de imigração ilegal para entrar num primeiro país europeu, e depois circulam.
Os angariadores dizem-lhes que em Portugal como em Espanha têm a possibilidade de se regularizarem através do trabalho na agricultura. E é essa necessidade que proporciona a exploração. Sujeitam-se a tudo. Assim ficam na total dependência dos angariadores e dos empregadores.
Nas grandes propriedades agrícolas em Portugal ficam fechados lá dentro. Esta espécie de escravatura assenta na ameaça que lhes é lançada de, em caso de serem apanhados, correm o risco de detenção e expulsão.
Assim, não saem da propriedade, onde lhes é dada comida e onde dormir – nos tais contentores, sem água corrente potável, nem água quente, nem duche, nem banho, nem esgotos.
São pagos à hora de trabalho, à volta de €3, e só quando trabalharem. Se chover duas semanas, são 15 dias sem verem dinheiro.
É a realidade para muitos milhares de pessoas que são mão de obra estrangeira, sobretudo no Alentejo português e na Andaluzia espanhola.
A desgraça da Covid-19 veio revelar a dimensão escravatura desta realidade.
Portugal, em choque, ficou confrontado com o que se passa entre nós.
O país, a começar pelo poder político e pelas autoridades, com a opinião pública muito forte a pressionar, está mobilizado para impor a decência, para que as pessoas que são mão de obra importada, passem a ter condições de vida digna.
E os tribunais já se preparam para julgar quem conduziu esta criminosa exploração.