Pais de crianças que crescem fora do seu país de origem podem enfrentar dificuldades para manter o elo dessas crianças com o idioma nativo e a cultura do seu país.
Na Austrália, desde 2017 o projeto Raízes Brasileiras oferece uma educação complementar bilíngue às crianças australiano-brasileiras e promove a língua portuguesa e a cultura brasileira entre famílias australianas de todas as origens culturais.
O projeto, que surgiu em um grupo de mães brasileiras em Brisbane, já ensinou mais de 200 crianças, abriu 20 grupos, realizou diversos eventos comunitários, seminários e chegou a outras cidades de Queensland, como Gold Coast e Sunshine Coast.
A idealizadora, diretora e coordenadora pedagógica do projeto, Lilian Fleuri, é linguista, pesquisadora e professora.
Lilian diz que o que mais a motivou a criar o Raízes Brasileiras foi o fato de ser mãe e querer que seus dois filhos crescessem com um interesse genuíno na língua portuguesa e na cultura do Brasil.“Surgiu como um projeto pessoal para tentar conciliar o fato de ser mãe de duas crianças que estavam crescendo trilíngues na Austrália com as minhas pesquisas e o meu trabalho de ensinar português como segunda língua. Como mãe, eu descobri a língua de herança ao criar as crianças trilíngues. O projeto então veio da minha necessidade, da minha família, dos meus colegas e amigos, das pessoas que me rodeavam aqui. Além de um interesse de pesquisa nessa área”, conta Lilian.
Segundo Lilian, o que mais a motivou a criar o Raízes Brasileiras foi o fato querer que seus filhos se interessassem pela língua portuguesa e cultura do Brasil. Source: Supplied
Ela diz que chamou sua atenção quando ela observou que o filho mais velho, que antes só falava português em um grupo de crianças que ela mantinha com outros pais e mães brasileiros, depois que passou a frequentar o preparatório para o Ano 1 na escola, começou a falar inglês no grupo. Isso fez com que ela e as outras mães e pais pensassem no que poderiam fazer para que as crianças se mantivessem falando português. Assim nasceu o Raízes Brasileiras em 2017, e Lilian assumiu a parte da pesquisa e a coordenação pedagógica.
Desafios para manter o interesse das crianças na língua de origem
Lilian destaca que “a criança aprende uma língua quando essa língua é significativa para ela, quando é presente na vida dela e quando faz parte do que ela é. Ser parte do que ela é pode ser controlado pelos pais até certa idade. Depois disso, vai depender da criança.”
A criança aprende uma língua quando essa língua é significativa para ela, quando é presente na vida dela e quando faz parte do que ela é.
Por isso, segundo Lilian, os pais que criam crianças bilíngues devem pensar nesse momento em que eles tem o controle da aquisição da linguagem da criança, pensar em como passar essa língua sendo praticamente os únicos provedores do idioma para a criança.
Lilian ressalta que a língua é social, não é algo que a pessoa adquire isoladamente. Para ser significativa ela precisa ser falada ao redor dessa criança. Só a mãe ou o pai falando com ela, vai dar um vocabulário, um entendimento básico. Mas o mundo da criança vai se desenvolvendo, ela vai se desapegando da família e criando mais vínculo com o social. Assim, eventualmente essa linguagem que está sendo passada pelo pai e pela mãe não é suficiente para ela se expressar em toda a sua plenitude.
A língua é social, não é algo que a pessoa adquire isoladamente. Para ser significativa ela precisa ser falada ao redor dessa criança.
“O desafio é como manter uma família bilíngue se nós temos parâmetros de aprendizagem e de entender a aquisição linguística a partir de um modelo monolíngue”, diz Lilian, e explica: “muitos julgamentos que a gente faz na hora de transmitir a língua aos filhos, vem de um conhecimento próprio de uma experiência monolíngue. E geralmente se busca ajuda na escola, que na Austrália, por exemplo, também segue um modelo monolíngue.
Segundo Lilian, se a criança cresce monolíngue falando inglês, e dentro do inglês somente, ela vai se ver assim. E a língua portuguesa acaba sendo só da mãe e/ou do pai, e não dela. Se ela está isolada dessa comunidade, desse meio, ela acaba não adotando essa identidade como dela.
Lilian destaca que “é um desafio articular o que vai ser ensinado dessa língua, além de manter isso acontecendo no período de 10 anos, que é o período em que a criança está adquirindo a língua. Depois da puberdade, ela já fixa o seu jeito de falar. Manter por 10 anos a linguagem como significativa e social é um grande desafio.”
Mas mais do que a criança, Lilian considera a família o foco principal do que o projeto busca. “É preciso educar os pais a se manterem falando português com as crianças. Parece muito simples a gente falar nossa língua com nossos filhos, mas o que se mostra nas pesquisas é que o que acontece é o contrário. A língua de herança é uma língua que tende a ser perdida. A característica dela é de que ela vai ser falada e adquirida até os cinco anos, quando a criança está completamente dependente da família e em contato com os pais, mas depois ela se perde com o passar do tempo.”
É preciso educar os pais a se manterem falando português com as crianças. Parece muito simples a gente falar nossa língua com os filhos, mas pesquisas mostram o contrário. A língua de herança tende a ser perdida.
Como o Raízes Brasileiras surgiu e se estruturou
Lilian apresentou o projeto no ambiente universitário, onde pesquisadores brasileiros se disponibilizaram a dar aula para as crianças. Source: Supplied
Lilian conta que a partir da ideia inicial do porjeto, o grupo começou a divulgar e muitas pessoas se interessaram em dar aula, em ensinar algo que sabiam. “Eu também apresentei o projeto dentro do ambiente universitário, onde pesquisadores brasileiros se disponibilizaram a dar aula para as crianças.”
Para que o Raízes Brasileiras aconteça, há sempre uma articulação de eventos e de aulas que sejam ligados um com o outro. “Se eu falo uma coisa no começo do ano, no final do ano aquele tópico vai ser retomado de um outro jeito, oferecendo às crianças uma outra experiência. Nós buscamos oferecer a elas uma série de experiências que envolvam suas famílias de uma forma ativa.”
Lilian também diz que o mais importante é ouvir o que as crianças querem e qual é a importância da língua para aquelas crianças. Ela observa que há crianças de famílias que falam inglês, que não se identificam com o português e não veem um motivo para falar a língua, a não ser pelas amizades que fazem no grupo.
Há crianças de famílias que falam mais o inglês no dia-a-dia, e por isso não se identificam com o português. O único motivo que veem para falar a língua são as amizades que fazem no grupo.
Como essas crianças também falam inglês entre elas, para estimular o engajamento delas em português é fundamental saber o que essas crianças querem aprender, que projeto querem desenvolver, o que é interessante para elas. Como exemplo, Lilian cita que recentemente elas disseram que queriam aprender violão. O músico e educador brasileiro Arthur Rocha, parceiro do projeto, propôs então ensinar a história da música caipira, sertaneja, e através disso trabalhar história, linguagem e vários aspectos.
Mas Lilian destaca que “a gente também vê o que as crianças tem para dar. Qual é o conhecimento prévio que elas tem. Para que seja um espaço de criação deles, de ser quem eles querem ser, em português. E com o apoio da escola, do director, dos pais, dessa articulação comunitária dos adultos.”
O projeto na prática
As aulas do projeto são realizadas uma vez por quinzena. Atividades estimulam escrita, leitura, fala e várias formas de contato das crianças com a língua. Source: Supplied
Os encontros do Projeto Raízes Brasileiras são promovidos em Brisbane quinzenalmente, aos sábados. Segundo Lilan, não há a necessidade de serem encontros semanais porque as crianças já tem o contato frequente com a língua portuguesa no ambiente familiar. “A escola é um momento de encontro, de evento em grupo para as crianças encontrarem os amigos. Por isso é feito a cada 15 dias.”
Cada ano é planejado seguindo uma temática, a partir da qual são desenvolvidos projetos para cada termo (trimestre), como brincadeiras regionais, experimentos científicos, tudo dentro de uma linha que pode tratar por exemplo da geografia brasileira. “A gente mistura os elementos de forma que as crianças possam interagir, falar, produzir, ler, ouvir, escrever, e que a linguagem se mantenha viva.”
A gente mistura os elementos de forma que as crianças possam interagir, falar, produzir, ler, ouvir, escrever, e que a linguagem se mantenha viva.
Algumas atividades envolvem os alunos em trabalhos colaborativos com as comunidades que estão no seu entorno. Lilian cita como exemplo a atividade desenvolvida sobre o Boi Bumbá, personagem do folclore brasileiro, que despertou o interesse das crianças do grupo.
Ela conta que as próprias crianças pesquisaram sobre o personagem, receberam a doação de um Boi Bumbá que foi reformado, estudaram a narração do boi e ensaiaram uma peça de teatro que foi apresentada em uma festa no dia das crianças, voltada para toda a comunidade local.
“Nesse evento, crianças que não fazem parte do grupo puderam ter acesso à apresentação em português. As crianças do projeto gostaram tanto do Boi Bumbá que deram a ele o nome de BOB (Boi of Brisbane) e se viram imersos e conectados com a lenda do Bumba meu Boi”, conta Lilian.
Para participar do projeto desenvolvido em Brisbane, a família deve inscrever a criança através de um formulário no e pagar a taxa, que varia de acordo com a idade da criança e a atividade desenvolvida. Segundo Lilian, são as taxas pagas pelas famílias que cobrem os serviços e custos do projeto, que ainda não tem um auxílio financeiro ou patrocínio, mas está em busca de conseguir algo nesse sentido.
O Raízes Brasileiras também foi levado a Gold Coast e Sunshine Coast através do treinamento e da formação de grupos de pais nessas comunidades. Lilian diz que o serviço oferecido às crianças nessas regiões tem o mesmo estilo e a mesma concepção do projeto original em Brisbane.
Resultados
Sobre os principais resultados atingidos pelo projeto até agora, Lilian diz que sente das famílias participantes um certo alívio em poder contra com pessoas que tem o mesmo objetivo que elas, de manter a língua portuguesa e a cultura brasileira vivas nos seus filhos.
Da parte das crianças, Lilian observa pelo grupo que o filho dela integra, que “para eles, o Raízes Brasileiras é como aquele grupo da rua, em que você brinca, cria, inventa, canta. Eles podem ser do jeito deles. Para mim, a gratificação é ver diretamente como mãe, a segurança que meus filhos tem da cultura deles. A segurança que eles tem de falar três línguas (no caso deles, já que a língua nativa do pai é o espanhol). São crianças que tem uma capacidade de entender o mundo de uma forma bastante ampla.”
Para mim, a gratificação é ver, diretamente como mãe, a segurança que meus filhos tem da cultura deles. Ninguém está dizendo para eles o que é ser brasileiro. Eles estão dizendo deles mesmos, da boca deles.
Lilian destaca que quando pergunta para o filho se ele consegue imaginar a vida dele sem falar português, ele responde que não entenderia a avó, que não conseguiria entender uma piada que a mãe conta ou quem a mãe é. E que isso não poderia acontecer.
Lilian relata que “a gratificação vem no dia-a-dia. Em ver esse grupo feito, que se permite se expressar na sua própria força. Ninguém está dizendo para eles o que é ser brasileiro. Eles estão dizendo deles mesmos, da boca deles. E isso eles demonstram em cada dia de aula, a cada discussão, a cada opinião que eles colocam, a cada proposta de atividade ou tema que eles fazem.” E completa: “Isso pra mim é o que fica. Essa geração que eu estou criando aberta para o mundo.”