O colonialismo misturado com o racismo na vandalização da estátua em Lisboa do Padre António Vieira

Portugal

Padre Antonio Vieira Source: SBS

Suscetíveis como estão as sensibilidades em volta do racismo e de violência policial associada ao racismo, as estátuas de figuras do passado tornaram-se um alvo, ainda que às vezes equivocado.


É o que aconteceu com a estátua do Padre António Vieira, colocada num largo na zona do Chiado, no coração da Lisboa mais requintada.

Apareceu com pichagens a vermelho assinadas por um grupo que denuncia a colonização portuguesa.

À luz da perspectiva de hoje, os países ibéricos Portugal e Espanha tiveram ações brutais de opressão e até eliminação de culturas indígenas nos territórios, designadamente das Américas e de África, que ocuparam no século XVI e seguintes.

Também têm a culpa de ter alimentado a escravatura.

Mas, atacar a figura do Padre António Vieira, para além da lástima que é vandalizar uma memória histórica, é escolher um alvo errado.
Vieira, missionário jesuíta que viveu 89 anos no século 17, entre 1608 e 1697, é uma das mais notáveis figuras de quase nove séculos de existência de Portugal.

As centenas de Sermões que escreveu e disse em Salvador da Bahia são considerados como dos mais belos textos da língua portuguesa.

O poeta Fernando Pessoa definiu-o como “Imperador da Língua Portuguesa”.

A vida do Padre António Vieira está contada com sabedoria pelo mais celebrado dos cineastas portugueses, o já falecido Manoel de Oliveira, no filme Verdade e Utopia, onde o ator brasileiro Lima Duarte interpreta Vieira já em fase de idade avançada.

A brasileira Edimara Lisboa, investigadora no Grupo de Pesquisa Colonialismo e Pós-Colonialismo na Universidade de São Paulo, na tese que elaborou sobre Vieira e aquele filme destaca o modo como o Padre António Vieira se dedicou à “defesa dos índios e dos negros escravizados no Brasil Colonial”.

Aliás, a informação no pedestal daquela estátua vandalizada em Lisboa destaca que aquela pessoa foi “defensor dos índios”. Também defensor dos judeus frente à poderosa Inquisição.

Num, o catedrático Manuel Augusto Rodrigues, hebraísta e arabista, explicou que o padre António Vieira foi “um destacado defensor dos direitos dos Judeus e dos cristãos-novos”.

O académico Artur Anselmo acrescentou: “Para o Padre António Vieira, a questão dos judeus assume grande importância, pelos quais toma partido, em oposição ao Santo Ofício. Com igual empenho diplomático, procura evangelizar os Índios do Maranhão e melhorar as suas condições de vida, dedicando ainda os últimos anos da sua vida à defesa do povo índio e à redacção da História do Futuro, cuja obra não chega a concluir”.

Vale termos em conta o tempo em que Vieira viveu, conforme ficou enquadrado, nesse congresso, pelo saber do ilustre historiador António Borges Coelho: “A vida do padre António Vieira cobre todo um século, o século dos génios e da Física; das guerras de religião. É um tempo em que a teoria e a prática do método experimental fazem o seu caminho. Newton e Leibniz descobrem o cálculo infinitesimal, e Espinosa ensina-nos o modo de ler. As ideias de tolerância e da liberdade de consciência emergem no horizonte. Nas palavras do padre António Vieira: de Lisboa partiam por terra todos os sábados os correios com “grande cópia de mentiras por todo o Reino”, mas Portugal expulsava os holandeses de Pernambuco, avançava na colonização do Maranhão e sustinha as armas espanholas. Os conflitos envolviam o militar, o ideológico, o comercial e o político. Havia fome de capital, e nos países ibéricos e nas suas colónias. fome de negros e de índios para as plantações do açúcar e do tabaco”.

Vieira, sendo missionário, dedicou-se a converter ao catolicismo os outros que encontrou no sertão brasileiro para onde viajou, com travessia do Atlântico, por seis vezes. Mas sempre com a preocupação de compreender e proteger esse outro.
Há que reconhecer em Vieira uma questão que, com a perspectiva de agora, mais de três séculos depois, perturba: ele combateu a escravidão dos índios mas deixou andar a dos negros.

Vieira, figura cimeira na cultura e nas letras portuguesas, foi um humanista mas, é um fato, não só nunca condenou como, pelo menos indiretamente, apadrinhou a violência colonialista da ação evangelizadora que incluiu a escravatura de povos africanos.

A colonização portuguesa dizimou muito das tribos ameríndias, e esse é um pecado pecado à luz da realidade de hoje que não é a do século XVII.

Mas o padre António Vieira, num célebre sermão pregado, para deleite de quem o escutou, na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos do Pelourinho, na Bahia, em que com a frequente inspiração da argumentação aristotélica, criticou as condições do trabalho escravo, mensagem que reforçou com recurso à junção de razão e imaginação na forma de metáfora ao comparar, como está escrito no Sermão XIV do volume XI dos Sermões, o sofrimento dos escravos com o martírio imposto a Cristo pelos fariseus: “Cristo despido, e vós despidos: Cristo sem comer, e vós famintos: Cristo em tudo maltratado, e vós maltratados em tudo”.

Através da construção retórica, Vieira busca o envolvimento e a adesão dos que o escutam ao comparar os escravos com Cristo, por mais que as realidades sejam diferentes.

Noutro sermão, Vieira confronta os senhores (os donos) com os escravos “De sorte que os ricos e os senhores têm nesta vida o seu paraíso, e os Lázaros e os escravos o seu purgatório”.

Vieira não se bateu pela libertação dos escravos mas não é um explorador da escravatura, o que lhe valeu muita hostilidade de portugueses poderosos na corte daquele tempo.

Por tudo isto e muito mais, parece um equívoco, até uma tristeza, que Vieira tenha sido o escolhido para alvo agora de pichagens com intuito anti-racista.

Mais valia que quem está nessa triste raiva se dedicasse a ler alguns dos sermões de António Vieira.

A figura e a obra de António Vieira, embora tocada por abusos que assim não eram entendidos nos anos seiscentos em que viveu, colocam-no no topo dos portugueses de todos os tempos.
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