Cineasta brasileiro ganhador do Teddy Award: “Houve muitas dificuldades para realizar o filme. Em 2022 foram só 3 longas brasileiros em Berlim. 2 anos atrás eram 19”

Gustavo Teddy

O cineasta brasileiro Gustavo Vinagre com o Teddy Award pelo melhor longa-metragem de temática LGBTQIA+ do Festival de Berlim de 2022. Source: Supplied

Gustavo Vinagre recebeu o Teddy Award no Festival de Berlim deste ano pelo longa-metragem "Três Tigres Tristes", um dos prêmios mais tradicionais do cinema mundial para filmes de temática LGBTQIA+. Em um discurso emocionado ele criticou Jair Bolsonaro e disse: “É fundamental que a nossa comunidade entenda que juntos somos muito mais numerosos e fortes”


O Mardi Gras 2022 em Sydney se realiza de 18 de fevereiro a 6 de março e teve início 44 anos atrás, em 1978, com um protesto da comunidade LGBTQIA+ da cidade e terminou com violência da polícia contra o grupo de manifestantes, o que não impediu que em 1979 a manifestação fosse ainda maior após o parlamento do estado de Nova Gales do Sul revogar a Lei de delitos sumários que possibilitou a prisão dos manifestantes no ano anterior.

Neste ano de 2022 o tema do Mardi Gras em Sydney é ‘United we shine’, juntos nós brilhamos, com o significado descrito no site do evento, de que quando a comunidade LGBTQIA+ se une, ela brilha mais.

Uma afirmação muito similar à que foi feita pelo cineasta brasileiro Gustavo Vinagre ao receber, no dia 18 de fevereiro, o Teddy Award de melhor filme pelo longa-metragem “Três Tigres Tristes”, exibido na mostra Fórum do Festival de Berlim de 2022. O Teddy Award é um dos prêmios mais importantes e tradicionais do cinema mundial voltado para filmes de temática LGBTQIA+.

Importância do prêmio
Gustavo conta que ficou muito emocionado ao receber o prêmio porque realizar “Três Tigres Tristes” foi um trabalho que levou muitos anos, desde a primeira versão do roteiro que ele escreveu em 2016, até conseguir financiamento para fazer o longa, que seria filmado em março de 2020, mas que com a pandemia da COVID-19 teve que ser adiado.

O orçamento do filme também foi impactado pelos protocolos de segurança adotados na pandemia. E a equipe ficou sem saber quando seria possível filmar. “A ANCINE (Agência Nacional do Cinema) simplesmente parou de funcionar, não respondia nossos e-mails sobre prórroga, se a gente conseguiria orçamento extra ou se poderíamos atrasar a entrega do filme”.

Gustavo explica que as filmagens de “Três Tigres Tristes” foram adiadas ao máximo para que a equipe conseguisse se vacinar contra a COVID-19, mas que chegou um momento em que não havia mais como adiar por causa do prazo que precisava ser cumprido. Mesmo assim, todos conseguiram se vacinar durante as filmagens e ninguém se infectou naquele período.

“Por todas essas dificuldades que a gente enfrentou para conseguir fazer o filme, esse prêmio é muito especial. Ainda mais num ano em que em Berlim a gente tem só três longas brasileiros representando o nosso país. Dois anos atrás eram 19 filmes brasileiros na Berlinale.”
Por todas as dificuldades que a gente enfrentou para fazer o filme, esse prêmio é muito especial. Este ano foram só 3 longas brasileiros em Berlim. Dois anos atrás eram 19.
Discurso crítico e emocionado

No discurso emocionado que fez ao receber o Teddy Award no Festival de Berlim deste ano, Gustavo citou várias vezes o presidente Jair Bolsonaro e fez críticas a ele. Gustavo disse no discurso: “Não vamos nos esquecer de como Bolsonaro ‘fez piada’ do coronavírus enquanto tínhamos mais de 600 mil pessoas morrendo, ou de como ele fez as pessoas duvidarem da vacina. Também não vamos nos esquecer de como ele fala das pessoas gordas, pretas e da comunidade LGBTQIA+”. 
Não vamos esquecer de como Bolsonaro ‘fez piada’ do coronavírus enquanto tínhamos mais de 600 mil pessoas morrendo, de como ele fez as pessoas duvidarem da vacina.
Nessa entrevista à SBS em português, Gustavo afirma: “Eu acho que a gente está vivendo algo muito fora do razoável atualmente no Brasil. A gente tem uma pessoa insana no poder que está acabando com a nossa saúde e jogando com as nossas vidas em troca de dinheiro.”

E completa: “Eu como cineasta, estando lá (recebendo um prêmio no festival de Berlim), não poderia deixar de falar dessas atrocidades que o mundo já sabe, mas é importante a gente se posicionar nesse sentido de deixar claro e mandar um recado de que a gente não vai se esquecer (do que ele fez).”

Outro ponto alto do discurso de Gustavo ao receber o Teddy Award foi quando ele falou sobre e importância de que a comunidade LGBTQIA+ esteja unida. Na entrevista à SBS ele explicou que encerrou o discurso falando isso “porque eu acho que hoje em dia a gente tem essa tendência a jogar uma certa raiva e frustração que a gente deveria ter contra um inimigo maior, que está muito claro qual é, entre pessoas da nossa própria convivência, dos nossos próprios núcleos.”
A gente tende a jogar uma raiva e frustração que a gente deveria ter contra um inimigo maior, entre pessoas da nossa própria convivência, dos nossos próprios núcleos.
E apesar de dizer que entende a importância de se reconhecer as diferenças entre as letras da sigla LGBTQIA+ e onde os preconceitos afetam cada uma delas, Gustavo acredita que exista uma grande estratégia para desunir a comunidade, e que “por isso é fundamental que as pessoas entendam que juntos somos muito mais numerosos e acabamos tendo mais força contra os males que estão aí”.

Os três tigres tristes

Por falar em união, é possível identificá-la em “Três Tigres Tristes” na relação dos três personagens principais, que Gustavo descreve da seguinte forma: “o Pedro é um menino que está sofrendo o luto do namorado, um homem um pouco mais velho que morreu. Na atualidade do filme ele se prostitui online. A Isabella é uma menina transexual que está estudando para fazer o ENEM, está muito focada em ter uma carreira e ficar rica. O Jonata que é sobrinho do Pedro, apesar de ter a mesma idade que ele, e é um menino que vem do interior porque lá ele esconde a sorologia dele. Ele é soropositivo e tem medo de pegar os remédios no posto de saúde, por isso transfere esse tratamento de HIV para São Paulo.”
Isa Pedro Jonata
Isabella, Pedro e Jonata são os jovens protagonistas do longa "Três Tigres Tristes", de Gustavo Vinagre, ganhador do Teddy Award de 2022. Source: Supplied
O filme se passa em um domingo em que o Jonatas vai a São Paulo por causa do tratamento, e os três passam juntos esse período de tempo.
O Pedro é um menino que sofre o luto do namorado que morreu. A Isabella é uma menina trans que estuda para o ENEM e o Jonata é do interior, onde esconde que é soropositivo.
Segundo Gustavo, a pandemia não estava presente no roteiro inicial do filme, que foi escrito antes do surgimento da COVID-19, mas com a chegada da pandemia e o impacto direto no orçamento do longa, houve a necessidade de enxugar o roteiro e tirar alguns personagens de cena.

“E  aí eu trouxe a pandemia para dentro do filme, porque para mim não fazia muito sentido fazer um filme fingindo que não existia pandemia. Então eu tratei de trazer a pandemia para o filme mas num outro estágio, talvez um estágio futuro, quando se descobre uma nova cepa que faz as pessoas perderem a memória.”
Máscara faceshield
A pandemia está presente em "Três Tigres Tristes", com personagens usando máscaras para se proteger de uma nova cepa que gera a falta de memória. Source: Supplied
O tempo é algo muito presente no filme, e Gustavo diz que vê os três personagens principais vivendo em tempos diferentes. “O Pedro é como se fosse alguém no passado, nesse luto do passado. A Isabella no futuro, pois está focada na frente, no que ela quer fazer. E o Jonata, que está em São Paulo vivendo simplesmente o presente, experimentando as coisas.”

Apesar de o filme tratar de questões complexas e de uma realidade dura, Gustavo diz que se inspirou um pouco nos filmes que gostava de assistir quando era criança, pois queria transmitir algo de leve e de ingênuo no longa, “diante desse peso todo que a gente está vivendo no mundo”.  

Fazer cinema no Brasil

Sobre as dificuldades enfrentadas nos últimos anos pelo setor do audiovisual e por quem trabalha com cinema no Brasil, Gustavo diz que sente que os filmes que ainda tem sido realizados, como o dele, “vem de um último respiro do Fundo Setorial do Audiovisual, que foi como foi feito o meu filme, através do fundo que a gente ganhou em dezembro de 2019, e desde então está tudo paralisado. O fundo tem uma quantia imensa de dinheiro mas está paralisado. Agora parece que vão lançar novos editais.”
Os filmes que ainda tem sido realizados vem de um último respiro do Fundo Setorial do Audiovisual, que está paralisado há alguns anos.
Gustavo destaca que até a ida dos realizadores aos festivais, que antes tinha o apoio da ANCINE para a compra de passagens aéreas por exemplo, para que eles estivessem presentes com seus filmes representando o Brasil, não tem mais.

“Minha ida esse ano para Berlim foi um drama por causa disso, porque eu não tinha um apoio oficial e precisei buscar apoio de diferentes formas. Hoje em dia os filmes que estão sendo lançados vem desses editais passados, que já não existem mais, ou então de fundos regionais, não federais. Aí, dependendo do estado ainda existe essa preocupação com a cultura ou não.”
Hoje em dia os filmes que estão sendo lançados vem de editais passados, que já não existem mais, ou então de fundos regionais, não federais.
O cineasta brasileiro diz que hoje em dia vê as pessoas que trabalham com audiovisual no Brasil sobrevivendo através de streaming, trabalhando em produtos que vão passar em streaming, como Netflix por exemplo.

Gustavo considera  importante que exista esse tipo de produção no Brasil, mas observa: “Eu acho complicado que a gente dependa apenas desse tipo de produção, que é muito dependente de um gosto comum internacional, que na verdade é uma maneira da gente terceirizar a nossa criatividade para essas empresas.”

E ressalta: “Existe um lugar que tem que ser protegido pelo Estado, que é um lugar de poder experimentar e de poder fazer cinema de autor também. Poder fazer um cinema que não necessariamente atenda a um gosto médio.”

Caminho do filme após o prêmio

Sobre as expectativas para o caminho que ‘Três Tigres Tristes’ vai trilhar depois de ter recebido o Teddy Award, Gustavo conta que desde que ganhou o prêmio não param de chegar e-mails de pessoas e festivais pedindo para ver o filme.

“Em geral o caminho é esse. Primeiro passar por todo o circuito de festivais. Eu quero muito que o filme seja visto no mundo inteiro. Tomara que ele vá para a Austrália também em algum momento.”
Primeiro (o longa deve) passar pelo circuito de festivais. Eu quero muito que o filme seja visto no mundo inteiro. Tomara que ele vá para a Austrália em algum momento.
Gustavo diz que espera que depois dos festivais o filme vá para as salas de cinema e seja exibido em VOD (vídeo sob demanda) e streaming. A vontade dele é de que o longa seja visto pelo maior número de pessoas.


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