Foi ao ler o romance Extinctions, da escritora australiana Josephine Wilson, que a doutora em sociologia Barbara Barbosa Neves, professora da Universidade Monash em Melbourne, teve a ideia de propor uma parceria à autora para levar histórias e personagens reais da sua pesquisa científica para a literatura.
Josephine Wilson ganhou em 2017 o prêmio Miles Franklin, o maior da literatura australiana, ao narrar a história de um engenheiro aposentado que vai morar em uma vila para idosos e se depara com a dificuldade de lidar com o envelhecimento e a solidão. Ao ler o livro, Barbara diz ter tido a sensação de estar lendo o conteúdo da própria pesquisa escrito de uma forma tão bonita, que ela, como escritora científica, nunca estaria apta a escrever.Barbara então decidiu fazer contato com Josephine para propor que ela desse uma nova linguagem ao material coletado na pesquisa através da sua escrita. Josephine gostou da ideia e recebeu da Barbara as gravações e transcrições das entrevistas feitas por ela durante a pesquisa. A partir daí foram escolhidos dois personagens, um homem de 90 anos e uma mulher de 79, que ganharam nomes fictícios escolhidos por eles próprios.
Josephine Wilson se inspirou em personagens e histórias da pesquisa da Barbara para falar nos seus contos sobre a solidão nos lares de idosos. Source: Supplied
Segundo Barbara, a escolha de Gurney e Patricia foi feita pelo fato de os dois sofrerem muito com a solidão, e cada um ter uma forma própria de lidar com a dor de se sentir só. Gurney através do humor e Patricia ao observar as árvores da janela do seu quarto compartilhado no asilo em que vive.
A riqueza de detalhes e a sensibilidade do olhar de Josephine Wilson sobre os personagens na sua narrativa chamaram a atenção da socióloga para aspectos contidos na pesquisa, aos quais ela não tinha se atentado antes.Entre esses aspectos, a visão da solidão como algo dinâmico, que se desenvolve também a partir do que acontece externamente, no entorno da pessoa; a relação da solidão com sensações físicas de toque, cheiro, espaço; e até mesmo o papel da Barbara como pesquisadora que traduz o sentimento de um grupo de pessoas, e amplifica as vozes daqueles que sofrem com a solidão nos asilos.
Barbara Barbosa Neves entendeu melhor o seu papel como tradutora do sentimento dos idosos em asilos a partir dos textos de Josephine Wilson. Source: Supplied
No conto "A Patricia tem 79 anos e gosta de olhar para as árvores, mas a Patricia não é uma árvore", a escritora Josephine Wilson destaca também a visão que os entrevistados tem sobre a Barbara, em trechos como esse:
"A Patricia gosta mesmo dessa rapariga que veio conversar com ela. Gosta de tudo nela, desde o modo como se inclina para si, sentada na cadeira, até ao cuidado com que regista todas as palavras que a Patricia diz como se a Patricia tivesse mesmo importância. A jovem ouve-a com tanta atenção que a Patricia fica com medo de a decepcionar. A jovem quer saber o que a Patricia pensa e, quando a Patricia não sabe o que dizer, ela incentiva-a com modos delicados. Já há muito que ninguém lhe pergunta como se sente, com a expectativa de ouvir a verdade. De facto, já faz tanto tempo que a Patricia não amolda os seus sentimentos a palavras reconhecíveis que não tem a certeza de ainda ser capaz de o fazer. Fala uma fala partida em pedaços, com pausas pelo meio, como se a sua história de vida tivesse sofrido um acidente e ficasse toda quebrada pelo chão."
O conto é concluído com o hábito diário da Patricia, de olhar pela janela, ver o movimento, as árvores e refletir sobre a solidão:
"A solidão, diz Patricia, é estar sentada nesta cadeira sozinha todo o dia. É solitário, não é? E é o que eu faço. Muito. Todos os dias. Mas temos mesmo de falar disso?
Há muitos que vêm para cá e põem-nos numa cadeira e ali ficam e nunca ninguém vem vê-los. Quando me sinto só, olho lá para fora pela janela. Ora veja: carros, pessoas, cães a passear. Não se está sozinho quando se tem vistas. Ali vai um indivíduo a caminhar. Tem de se caminhar muito e eles vêm das casas até cá acima às lojas. Ele até podia apanhar aquele autocarro, mas isso é preguiça.
Porque não posso eu ser feliz como são as árvores?"A tradução dos originais em inglês para o português foi feita pela tradutora literária portuguesa Isabel Pedro dos Santos. Ela também traduziu o conto fantástico "Fugir da solidão: o voo de Gurney", que ressalta a paixão do senhor de 90 anos por aviação e a crítica que ele tem a quem acha que todos os idosos gostam de jogar bingo.
Personagem de nome fictício Patricia tem na vista da janela do seu quarto um alívio para a solidão. Source: Getty Images/PamelaJoeMcFarlane
"Um dia, o Gurney acordou de um sonho agitado e viu-se não na sua cama de solteiro coberta com um resguardo impermeável, mas no cockpit de um Cessna 172 Skyhawk, a ganhar altitude. O sol punha-se e já as primeiras estrelas mordiscavam buraquinhos no canto do céu. Inclinou-se sobre os comandos de voo, verificou os ailerons e iniciou uma volta. Já mal se via o contorno daquilo a que chamavam “Lar”, onde vivera aprisionado durante sete anos. Bom, mas não iria voltar a semelhante lugar. Foxtrot-Sierra!"
"Não haveria mais portas com cunhas para que não fechassem e funcionários a espreitar de cara virada para baixo, preenchendo os quadradinhos das folhas de registo, a confirmar que o nº 7 ainda estava sentado direitinho e meio vivo! Não haveria mais banhos na cama. Não haveria mais comida triturada e consumida à luz de lâmpadas fluorescentes. Não haveria mais chá frio e bolachas baratas. Não haveria mais bingo.
Bingo!"
Não haveria mais comida triturada e consumida à luz de lâmpadas fluorescentes. Não haveria mais chá frio e bolachas baratas. Não haveria mais bingo. Bingo!
A ideia da Barbara agora é, passada a pandemia, quando ela voltar a apresentar a sua pesquisa às plateias, em vez de usar o tradicional Power Point no início das apresentações, ler os contos da Josephine Wilson, para ver se a audiência vai ter mais empatia com o tema.
Ao falar em pandemia, Barbara lamenta tudo de ruim que a COVID-19 trouxe, como a dor das famílias que perderam seus entes queridos. Mas ela acredita que o isolamento social ao qual muitas pessoas tiveram que se submeter, pode gerar uma reflexão importante no sentido de entender o que os idosos sentem quando vivem nesses locais, sem poder sair, sem receber visitas, sem ver de perto as pessoas que amam, e de como essa situação pode intensificar um sentimento de solidão com o qual é muito difícil lidar.
Para Barbara, "a solidão tem uma dimensão social e coletiva, e por isso a resposta de combater a solidão é de todos nós."
Barbara Barbosa Neves descreve a colaboração com Josephine Wilson no arquivo científico , publicado no jornal Qualitative Research.