Camila* chegou à Austrália em abril do ano passado e, em junho, aceitou um emprego de babá para morar com uma família australiana em Brisbane. Ela deveria cuidar de duas crianças, mas acabou fazendo também o trabalho de casa fora do horário combinado com a família.
“Quando você é Au Pair, você é responsável só pelas crianças, mas eu tive que limpar a casa e ficar com as crianças junto. Eu queria estudar e as crianças ficavam entrando no meu quarto nas minhas horas de folga.”
Com inglês básico, a estudante pensou ter encontrado uma boa oportunidade de emprego quando chegou, mas ela diz que o trabalho se transformou em escravidão.
“Eles pagavam muito abaixo do valor por hora aqui na Austrália – o mínimo para a categoria seriam AU$ 23, mas eles pagavam AU$8. Como eu tinha alimentação e moradia, eles justificavam isso. Mas, depois de um tempo, se tornou trabalho escravo.”
Estudantes brasileiros fazem denúncia:
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A contadora Diana Hauschild, integrante do Instituto de Contadores Públicos da Austrália, explica que o trabalho de Au Pair é diferente de babá. Segundo ela, estudantes que moram na casa de uma família são babás que podem trabalhar 20 horas por semana.
O caso de Camila não é isolado. Mais da metade dos estudantes brasileiros ganha menos do que o mínimo oficial de AU18.29 por hora, de acordo com a pesquisa nacional "Roubo de Salários na Austrália" (), que foi o maior estudo já feito no país sobre as condições de trabalho de estudantes e mochileiros estrangeiros, com visto temporário. Vítor* trabalha no setor de bares e restaurantes em Sydney e também já recebeu menos do que o salário oficial.
“Eles pagavam abaixo do salário na época: AU$14 pros assistentes de cozinha e AU$15 pras garçonetes.”
Brasileiros são dos mais explorados:
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CASH IN HAND
Todos os estudantes brasileiros entrevistados pela SBS Português já receberam cash-in-hand, que é quando as empresas pagam os trabalhadores em dinheiro. De acordo com a pesquisa, o pagamento em dinheiro pode indicar evasão de impostos, mas também pode ser feito dentro da lei, conforme a contadora Diana Hauschild.
“O cash-in-hand pode ser legal. Muitas empresas recebem pagamento em dinheiro por seus produtos e serviços, mas a empresa deve declarar os devidos impostos. O dinheiro também pode ser usado para pagar os funcionários, desde que os trabalhadores estejam registrados no Tax File Number (TFN) e recebam o pay slip estipulando quanto foi o total. Se for pelo ABN (Australian Business Number), também pode ser em dinheiro com a emissão de um invoice.”
“A gente trabalhava mais de 30 horas, mas eles declaravam 20 (horas) no tax e pagavam o resto em dinheiro. Quando eles enviavam pra tax, parecia que estava tudo certo. Tinha gente que recebia só em dinheiro”, diz Vítor, que trabalhou para uma churrascaria brasileira e também para o mexicano Playa Takeria, em Darlinghurst.
“Isso não está correto. O funcionário está perdendo o Superannuation e a empresa não está declarando esse valor, o que é ilegal”, diz Diana.
“Eles pagavam cash-in-hand. Eu nunca recebi horas-extras ou coisas do tipo. Foi um contrato ‘de boca’, tipo ‘vem trabalhar pra mim?’ e eu disse ` ok`”, contou a babá Camila.
“O correto é fazer no pay slip. A pessoa vai descontar o tax e pagar o Superannuation”, esclarece Diana.
Casos de fraude com o Australian Business Number também são comuns, segundo Ana*, especialmente no setor de limpeza. Ela foi obrigada pelo empregador a registrar um ABN para poder trabalhar.
“Não posso declarar o número de horas, só o valor, e fica parecendo que ganho AU$ 36 por hora. Se eu não aceito, tem alguém que aceita.”
A contadora Diana Hauschild confirma que o ABN não requer a declaração do número de horas trabalhadas, apenas o valor total do serviço. Segundo ela, quem trabalha com o Australian Business Number é um prestador de serviço independente, podendo atuar para várias empresas. "Se eles trabalham para uma empresa só, deveriam receber o Superannuation", says Diana.
Para os estudantes, é frequente trabalhar acima do limite de 20 horas permitido pela lei australiana, mas eles dizem que não tem opção.
“Trabalhamos (na limpeza) nove horas por dia todos os dias da semana, de segunda a sexta, das sete da manhã às quatro da tarde”, diz Ana.
“Era umas cerca de oito, nove horas por dia, umas três vezes por semana. Eles é que determinam o número de horas porque o trabalho tem que ser feito”, diz Joana*, que colocava preços em roupas para a dona de uma loja. Joana trabalhava na casa da empresária, sem contrato nem qualquer tipo de registro.
“Eles queriam que eu trabalhasse muito mais do que o permitido, até porque sou estudante aqui e meu visto é restrito”, diz a babá Camila.
AJUDA EM 40 IDIOMAS
O Fair Work Ombudsman (FWO), que fiscaliza as relações de trabalho na Austrália, financiou uma pesquisa realizada pela Universidade de Adelaide no ano passado para investigar o assunto. Segundo o Diretor de Mídia Mark Lee, o departamento está ciente da vulnerabilidade dos estudantes estrangeiros.
“Sabemos que jovens, especialmente vindos de outros países, são mais vulneráveis à exploração no mercado de trabalho por muitas razões e nós estamos adotando medidas para resolver isso. Entre elas, mudamos o nosso website para incluir 40 idiomas e também criamos um formulário para denúncias anônimas.”
Os brasileiros afirmam que a exploração de estudantes é prática comum entre os empregadores que, conforme eles, tentam evitar o pagamento de impostos para o governo australiano.
“Eu sei de restaurantes que marcam vários trials durante uma semana pra não pagar quando eles estão short-staffed”, diz Vítor.
“É uma coisa de negócio, para tirar vantagem de uma pessoa que não tem muitas condições. Eles (os empregadores) não querem declarar pro governo”, acrescenta Camila.
O pagamento sem registro torna mais difícil para os empregados denunciarem más condições de trabalho, mas os estudantes afirmam que se submetem por questões de sobrevivência.
“Quando você trabalha em cash, se der qualquer problema, você não tem como denunciar. Se o chefe resolver não pagar, tem que fazer o que os brasileiros fazem: pedir para os outros ligarem até o cara pagar”, comenta Vítor.
Os brasileiros usam grupos no Facebook para pedir a outros membros da comunidade que pressionem os empregadores na tentativa de receber os salários. Existe, inclusive, um grupo criado especificamente com esse propósito, chamado 'A Lista Negra - Ciladas em Sydney'.
“Tem uma pressão bem grande para que você seja ágil, às vezes sem intervalo para comer. Tem chefe que desconta o valor do intervalo do almoço”, lamenta Ana.
“Não tem nem o porquê reclamar”, argumenta Joana.
VISTO GARANTIDO
Mark Lee avisa aos estudantes estrangeiros que podem reclamar sim. Segundo ele, o Fair Work Ombudsman fez um acordo com o Departamento de Imigração para proteger o visto dos estudantes explorados.
“Metade dos jovens estudantes internacionais pensa que se fizer uma denúncia, nada vai acontecer ou a situação vai piorar. A maioria está preocupada com o visto. Então, criamos um protocolo em que, se um trabalhador não cumprir as condições de seu visto como resultado da exploração no trabalho, ele pode denunciar e nós podemos garantir que não sofrerá consequências negativas, como ter o visto cancelado ou ser deportado. Existem condições, como o trabalhador não desobedecer as regras do visto no futuro.”
Apesar das dificuldades, os estudantes dizem que não tem opção por causa da pressão dos empregadores e porque tem que sobreviver na Austrália.
“Infelizmente, com 20 horas trabalhadas você não consegue viver na cidade de Sydney, que é bem cara”, diz Joana.
“Pra mim, eu achei uma boa oportunidade, mas eu não tinha muita idéia de valor ou que isso seria considerado um trabalho escravo. Eu também sou um pouco errada, mas não tinha noção”, explica Camila.
“Eu sabia o que eu estava fazendo nesse momento, mas eu aceitei porque eu precisava do dinheiro. A galera quer trabalhar porque precisa do dinheiro, e quem acaba de chegar aceita”, analisa Vítor.
“Donos de empresas se aproveitam da situação de que a gente é estudante, que é imigrante, que precisa do dinheiro, e acabam explorando”, conclui Ana.
O Diretor de Mídia Mark Lee explica que é parte do trabalho do Fair Work Ombudsman garantir que as empresas paguem os trabalhadores corretamente e não estejam engajadas em práticas ilegais.
“Então, se os estudantes estão vivendo isso no trabalho, nós os encorajamos a denunciar e podemos oferecer aquela proteção em relação ao visto se cooperarem conosco na investigação.”
DESCULPAS
A Rádio SBS Português conseguiu contato com duas empresas mencionadas pelos estudantes brasileiros. O responsável pela companhia de limpeza que exige o ABN dos funcionários recusou dar entrevista, mas disse que não trabalha com pagamento em dinheiro e que todas as operações financeiras são registradas nos livros de contabilidade da empresa.
Já o restaurante mexicano Playa Takeria, localizado no bairro Darlinghurst em Sydney, teria pago os estudantes em dinheiro, sem nenhum registro contábil.
O Fair Work Ombudsman confirmou que o Playa Takeria foi motivo de várias denúncias, que foram resolvidas sem necessidade de ação legal. E acrescentou que, atualmente, não há nenhuma investigação em andamento contra o restaurante.
O Playa Takeria fechou as portas, mas um homem chamado Ric respondeu à SBS Português por email. Ele pediu desculpas aos trabalhadores, mas disse que o setor de bares e restaurantes é muito concorrido e que o dono do restaurante era um estudante que teve dificuldades com o fluxo de caixa.
Um Porta-Voz do Departamento de imigração explicou que uma força-tarefa denominada 'Cadena' - que inclui o Departamento, o Australian Border Force (ABF) e o Fair Work Ombudsman (FWO) - foi criada em junho de 2015 exatamente para investigar os envolvidos em fraudes com o visto, trabalho ilegal e exploração de trabalhadores estrangeiros na Austrália.
O Porta-Voz incentivou os estudantes que estejam trabalhando em condições ilegais a entrarem em contato com o Departamento, e encorajou aqueles que acreditam que não estão recebendo seus direitos a denunciarem sua situação ao Fair Work Ombudsman (FWO).
"Na situação em que os portadores de um visto com direito de trabalho estejam sendo explorados e tenham denunciado suas circunstâncias ao FWO, o Departamento geralmente não cancelará seus vistos e eles não serão presos ou deportados, desde que se comprometam a respeitar as condições do visto no futuro; e desde que não haja nenhuma outra base para o cancelamento (como casos de segurança nacional, caráter, saúde ou fraude)."
Para mais informações, visite o site do e, se preferir, selecione o idioma português, ou telefone para 13 13 94.
*Todos os nomes foram trocados a pedido dos estudantes.
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Do Arquivo da SBS Portuguese:
Gerente de cafeteria penalizado em 27.200 dólares por explorar trabalhadores estrangeiros