Carlos do Carmo, sendo o Sinatra português, é um expoente do fado, como se percebe ao cantar "Por morrer uma andorinha", ou também a cantar "Canoas do Tejo". Como foi muito repetido neste 1º de janeiro em que Carlos do Carmo não resistiu após 9 horas de cirurgia a um vasto aneurisma da aorta, o fado teve uma rainha – Amália Rodrigues - e teve um rei – Carlos do Carmo.
O fado é quase sempre nostalgia, lamento de algo que falta, o amor perdido, o companheiro que partiu. Vem assim desde o tempo antigo de navegadores portugueses a cruzar os mares.
A história do Fado, a mais portuguesa das músicas e canções é um longo processo de trocas interculturais, No contexto multicultural do Brasil colonial, os ritmos e os padrões de dança africanos combinam-se com as harmonias e as formas europeias para gerar uma dança cantada de forte sensualidade que atravessou o Atlântico para se implantar nos bairros populares do porto de Lisboa. É em Lisboa que o fado cresceu. Gradualmente há um desaparecimento do elemento de dança e a atenuação do ritmo sincopado original, para dar lugar a uma atmosfera nostálgica e lamentatória, com um forte dramatização na declamação do poema cantado.
O fado tem 3 vozes lendárias.
Alfredo Marceneiro, o purista, na primeira metade do século XX, cantava o fado como se fosse uma reza.
Depois, Amália que, com voz prodigiosa, levou o fado ao mundo.
A seguir, precisamente Carlos do Carmo, o último dos três grandes, o grande renovador e ao mesmo tempo o semeador de novas colheitas.
Carlos do Carmo impôs-se como grande voz do fado, fez o fado evoluir – por exemplo a compatibilizar o som de orquestra com o acompanhamento que antes era apenas viola e guitarra. Carlos do Carmo é uma voz que acrescentou ao fado timbre, novos modos de música, novas palavras, mais poesia coim grandes poetas – alguns que passaram a querer escrever para fado. Mas Carlos do Carmo foi também um militante do fado.
É com militância que libertou o fado do estigma que tinha de canção usada pela ditadura e renovou-o como canção do Portugal democrático.
No tempo imediatamente após a revolução democrática de 1974, a rádio não passava fados, porque tinham o estigma de canção do regime de Salazar.
Carlos do Carmo, com autoridade de militante das esquerdas e reconhecido pelo público como artista de eleição, renovou os públicos do fado que hoje é um género cultivado pelos mais novos. Essa militância de Carlos do Carmo pelo fado também mobilizou novos compositores e poetas, que ele encorajou e acarinhou, também novos intérpretes, foi assim que surgiram e estão a impor-se os fadistas das novas gerações, Carminho, Ana Moura, Camané, António Zambujo, Mafalda Arnauth, Marisa, Mísia, Ricardo Ribeiro, Cuca Roseta, Kátia Guerreiro, tantos.
A militância de Carlos do Carmo pelo fado também foi determinante para levar a UNESCO a reconhecer o fado como património imaterial da humanidade.
É com este espírito que Carlos do Carmo sonhou e concretizou o Museu do Fado, no sopé da colina do carismático bairro lisboeta de Alfama, como memória da história do fado e, ao mesmo tempo uma verdadeira escola de fadistas para o futuro.
Carlos do Carmo tinha-se despedido dos palcos a 19 de Novembro de 2019, com um concerto, com a ampla sala a abarrotar, no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, no mesmo dia em foi condecorado pelo primeiro-ministro António Costa com a Medalha de Mérito Cultural pelo seu “inestimável contributo” para a música portuguesa.
Essa despedida dos palcos forçada pela degradação de saúde, com vários problemas cardiovasculares aos 80 anos de idade e 56 de carreira, não foi, contudo, uma despedida do fado, já que Carlos do Carmo continuou o seu trabalho, tendo pronto o novo disco, que irá ser editado proximamente. O título E Ainda..., sugere a ideia de tempo suplementar. Sabe-se que neste disco Carlos do Carmo canta grandes poetas portugueses:Herberto Helder, Sophia de Mello Breyner Andresen, Hélia Correia, Júlio Pomar e Jorge Palma, nomes que junta aos inúmeros poetas do seu repertório.Este E Ainda… será já, pois, um disco póstumo, mas a celebrar uma carreira de mais de meio século em palco e em cena, aplaudida em Portugal e um pouco por todo o mundo, cantou no Olympia e no Auditório Nacional, em Paris, no Le Carré, em Amesterdão, no Place des Arts, em Montreal, no Canadá, nas óperas de Frankfurt e de Wiesbaden, na Alemanha, no “Canecão”, no Rio de Janeiro, e no Memorial da América Latina, em São Paulo, no Brasil, no Royal Albert Hall, em Londres, entre tantas outras salas.
Source: José Goulão, Wikimedia CC-by-SA-2.0
Todas as canções de Carlos do Carmo são sempre marcantes. Uma delas, Menina e Moça, transformou-se em hino de Lisboa. Fica bem a Lisboa, ficará sempre bem a Lisboa este Lisboa, menina e moça. É a Garota de Ipanema lisboeta. Fica bem cantada por velhos e novos. Fica bem tocada clássica – guitarra e viola, xaile negro, voz pungente e olhos cerrados - e fica bem com arranjos de jazz, outfit avant garde e voz murmurante. É uma canção elegante. Marcante. Forte. Poderosa. E diz tanto a quem tenha crescido nas ruas da Mouraria e tenha vivido uma Lisboa fechada para o mundo como diz tanto a quem tenha acabado de aterrar na Lisboa cosmopolita que antes da COVID-19 se enchia com turistas.
Lisboa no meu amor deitada
Cidade por minhas mãos despida
Lisboa menina e moça amada
Cidade mulher da minha vida
Cidade por minhas mãos despida
Lisboa menina e moça amada
Cidade mulher da minha vida
Está decretado um dia de luto nacional para esta segunda-feira, 4, que é também o dia do seu funeral. As cerimónias fúnebres terão lugar em Lisboa, na Basílica da Estrela. O velório terá início às 9h, com missa de corpo presente pelas 14h.