2020 é o maldito ano da COVID-19, mas também é o do triunfo da ciência

Kamala Harris, a primeira mulher negra vice-presidente dos EUA, toma a vacina contra a COVID-19.

2020: Kamala Harris, a primeira mulher negra vice-presidente dos EUA, toma a vacina contra a COVID-19. Source: AAP

Há aqui o sinal de abraço a um mundo mais inclusivo, com o desejo de que em 2021 os criadores possam ter melhor fôlego para criar, e que todos possamos ter novo deleite


Estamos à beira de virar o ano.

Aqui no Hemisfério Norte, muitos países não vão poder celebrar na rua, com o tradicional fogo de artificio, a passagem para o ano que toda a gente anseia que seja muito melhor.

Não é por causa do frio e da neve que não se pode, é porque a pandemia impõe recolher obrigatório. Em Portugal é a partir das 11 da noite do dia 31, sendo que logo à uma da tarde do último dia do ano todo o comércio fecha e ficam proibidas até 4 de janeiro as deslocações para fora do município de residência.

Mas a viragem de ano tem esperança.

A vacina já cá está e promete domar a COVID ao longo do ano que entra. Trump está de saída e deixa os autocratas pelo mundo sem a principal mecha incendiária. A nova liderança dos EUA promete devolver prioridade à emergência climática. O Brexit resolveu-se em modo amigável, embora sem Erasmus. O final deste canibal 2020 que agoniza traz-nos, com os pés no chão, consistentes motivos para esperanças, ainda que avisados para mais sofrimentos e desespero, porque as feridas abertas são difíceis de sarar e a convalescença económica vai ser duríssima e longa.

Este maldito 2020 que acaba é o ano que trouxe dor, asfixia, morte e pobreza em porções inimagináveis. Quase nada foi como deveria ter sido. Vivemos com a angústia pela ameaça do vírus. Nem tivemos possibilidade de nos despedir de quem morreu na solidão da COVID. Ficámos sem tantos beijos e abraços. Tanta gente perdeu o trabalho e o sustento. Logo na primavera percebemos que este ano não dava para organizar planos. Não pudemos viajar. Chegámos a ter apertada limitação de movimentos. Tivemos de aprender a melhor resistir às adversidades da vida. Passámos ao teletrabalho e habituámo-nos a viver ligados por um qualquer Zoom. Estivemos todo o ano a ouvir falar de COVID, de layoff, de Trump e de Brexit.

Mas já estamos bem armados para vencer o vírus. Há gente que já está a ser vacinada. Essas pessoas são protagonistas de um comovente momento de unidade para a esperança. Numa época tão desgastada por azedumes e venenos, é devido celebrarmos com entusiamo o valor de quem nos deu em tempo breve sem precedentes a vacina como arma valente para nos defendermos: mérito da ciência, com a comunidade científica em excecional cooperação (muita gente a merecer Nobel), e de quem financiou esse colossal esforço. Está tudo a correr como desejado. A inquietação que permanece é a tanta gente que em outras regiões do mundo, como África, ainda não tem horizonte para acesso universal à vacina.

A recuperação sanitária vai ser progressiva mas firme. A económica, é muito complexa e incerta. A segurança sanitária é determinante para essa recuperação económica, resta saber como estará a paisagem depois da devastação. Quantas ruínas poderão ser recuperadas e salvas? Quantos postos de trabalho poderão ser reconquistados nos meses seguintes? Como é que pessoas e empresas vão enfrentar o fim das moratórias que, em primeiras fases de respiração assistida, foram aprovadas? Que novos salva-vidas poderão ser introduzidos?

A palavra resiliência, tão reclamada ao longo deste ano, funde resistência com paciência. Vai ser preciso meter-lhe a noção de confiança no futuro. A resiliência tem de se traduzir em força para confiança nas possibilidades de cada pessoa para conseguir a fortaleza da recuperação. A vacina funciona como símbolo: cuidar de cada pessoa também é uma forma de cuidar das outras pessoas.

Este longo 2020 começou, logo em 3 de janeiro, com um drone americano a assassinar um dos grandes estrategos militares do Irão, o general Qasem Soleimani. Cinco dias depois, condenável retaliação por parte da Guarda Revolucionária do Irão: o Boeing 737-800 no voo 752 da Ukraine International Airlines, pouco depois de descolar do aeroporto Komeini, em Teerão, rumo a Kiev, foi abatido por um míssil terra-ar que fez explodir o avião e causar a morte dos 167 passageiros (a maior parte formada por iranianos, muitos deles estudantes) e 9 tripulantes. O presidente Hassan Rouhani, após dias a negar responsabilidades iranianas, acabou por reconhecer o “imperdoável erro” da guerreira Guarda Revolucionária. Aquela primeira semana do ano lembrou-nos como estamos frágeis, perante a ameaça de eclodir uma guerra que pode tornar-se generalizada.

Mas em 9 de janeiro, dia seguinte ao derrube assassino do Boeing ucraniano, a China anunciou a primeira morte (oficial) por um novo coronavírus. Duas semanas depois, em 23 de janeiro, as autoridades chinesas decretaram o lockdown absoluto para os 11 milhões de residentes em Wuhan. No final desse janeiro, a Organização Mundial de Saúde declarou esse vírus como causa de “emergência sanitária global”. Em 11 de fevereiro, com o contágio a propagar-se fora da China, a OMS deu nome à emergência sanitária: COVID-19. Entramos oficialmente na pandemia SARS-CoV-2. Atacou ao longo deste ano pelo menos 80 milhões de pessoas que ficaram contagiadas. Esta COVID-19 é causa direta da morte de até agora 1 milhão e 780 mil pessoas. É uma calamidade que ataca quase todos os países do mundo.

Todas as outras notícias normalmente relevantes ficaram muito secundarizadas pela tragédia da pandemia.

Em setembro, o consórcio científico-farmacêutico formado pela Pfizer e pela BioNTech, logo seguido por outros grupos, anunciou que extraordinários esforços permitiam conseguir em seis meses o que normalmente demoraria 10 anos: o essencial da vacina contra a COVID-19.

Agora, ela aí está, para nos salvar. Como antes fomos salvos da tuberculose e de tantos outros males. Falta concluir de modo decisivo o ataque à malária que todos os anos mata uns 4 milhões de pessoas no mundo mais pobre.

Este ano dominado pela COVID-19 deixou para trás o necessário combate decisivo às alterações climáticas. Há o temor de que passemos da dramática convulsão COVID para uma também terrível catástrofe climática. A Austrália, a California e outras regiões do mundo sentiram neste 2020 como o fogo é um inferno. Há a esperança de que neste 2021, que terá no final do ano a crucial conferência COP26, coordenada pela ONU, possa conseguir avanços salvadores da relação da humanidade com o clima.

Neste 2020, quando não se falou de pandemia, falou-se de Trump, que também se eclipsa com o ano que acaba. Aqueles 8 minutos e 46 segundos de cruel matança, por um polícia, em Minneapolis, de George Floyd, negro com 46 anos, devem ter contribuído para mudar a história. Aquele desesperado “I can’t breathe” reverberou por todo mundo.

Daqui a três semanas toma posse a nova presidência dos EUA, com Kamala Harris, a primeira mulher e negra na vice-presidência. Ainda que seja conveniente não alimentar altas ilusões, é de prever que fique instalada melhor convivência no mundo – é sabido que há quem especule que isto tudo em vez de esperança é conspiração de forças malignas. Há quem não saiba libertar-se do ódio e, desgraçadamente, há por toda a parte meios que o alimentam.

Em Portugal, 2020 é o ano em que o Presidente da República promulgou a nova Lei da Nacionalidade que permite que tenham nacionalidade portuguesa à nascença os filhos de imigrantes que residam no país há pelo menos um ano, mesmo que ilegalmente, ou então que tenham um dos progenitores a residir legalmente no território português, independentemente do tempo a que aqui está.

É um ano em que os portugueses foram confrontados com o brutal abuso de força dos policias do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. O país está indignado com o caso do cidadão ucraniano que morreu no SEF do aeroporto de Lisboa: esteve 15 horas manietado com fita-cola e algemas. Foi visto assim por enfermeiros, inspectores, chefes. Ficou numa sala, preso, durante horas, com calças pelos joelhos e cheiro a urina. O médico que passou óbito omitiu as agressões e declarou como morte natural o que foi morte por tortura.

A COVID pôs à prova também os portugueses. Multiplicam-se atos de solidariedade.

Neste 2020 ficou reforçado o alerta para a gravíssima emergência do terrorismo jiadista em Cabo Delgado, no norte de Moçambique. Para além do Papa que pede a mobilização de atenções, quem acode às vítimas desta tragédia em curso?

E na Terra Santa, vai ser possível salvar a negociação de compromissos que respeitem a dignidade de parte dos que lá vivem? O mesmo na Venezuela e em outros magoados lugares do mundo.

Neste 2020 foi possível que criadores fora da regra como Billie Eilish e os cineastas de Parasites triunfassem, respetivamente, nos Grammies e nos Óscares. Há aqui o sinal de abraço a um mundo mais inclusivo. Com o desejo de que em 2021 os criadores possam ter melhor fôlego para criar e que todos possamos ter novo deleite.

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