Um pouco por toda a Austrália, os hospitais estão altamente necessitados de profissionais certificados para lidar com pacientes vítimas de Covid-19. Enfermeiras e parteiras são aliciadas a interromperem as suas baixas médicas, licenças e férias para regressarem ao trabalho. Depois, acabam por receber horas excessivas de turnos duplos e horas extraordinárias extra.
A pandemia criou uma escassez de funcionários no setor de saúde. É por isso que o país está agora a pedir que enfermeiros estrangeiros respondam à extrema necessidade de pessoal nos hospitais.
DESTAQUE:
- Em 2021, contaram-se cerca de 450.000 enfermeiras e parteiras qualificadas e reconhecidas na Austrália, mas o país está a enfrentar escassez de funcionários hospitalares no contexto do aumento de pacientes com COVID-19 durante a pandemia
- Para trabalhar como enfermeiro na Austrália, é preciso responder aos requisitos mínimos obrigatórios do uso da língua inglesa, bem como garantir as equivalências do processo do NMBA
- Existem exames separados e diferentes para IQNM (Internacional Qualified Nurse and Midwife) que pretendem começar a trabalhar na Austrália como RN (Registered nurse), enfermeira EN (Enrolled Nurse) matriculada na universidade, ou parteira.
Mas antes de poder trabalhar como enfermeiro na Austrália, é fundamental ter feito a aplicação ou já ter obtido a aprovação do Conselho de Enfermagem e Obstetrícia da Austrália (NMBA).
Tal como explica Kristine Dawang, educadora de enfermagem líder de um centro de treinamento preparatório para o Exame Clínico Estruturado Objetivo (OSCE), as Enfermeiras e Parteiras Qualificadas Internacionalmente (IQNMs) só podem obter o certificado de enfermagem australiano através da Agência Australiana de Regulação de Profissionais de Saúde (AHPRA).
A AHPRA avalia os pedidos de certificação com muita atenção e avalia os diferentes critérios relativos aos requisitos obrigatórios estabelecidos por cada conselho.Check-in automático
As enfermeiras estão expostas a todo o tipo de perigos, durante todas as suas horas de trabalho Source: Harlene Martin Pereyra
Os nossos aplicantes precisam primeiro de fazer um auto check-in no website da AHPRA. Ao fazerem este check-in, saberão logo se estarão qualificados para fazer o Outcome-Based Assessment (OBA)
Esclarece Dawang.
Um depósito não reembolsável de $640 é, então, pago à AHPRA para verificação da documentação e permissão para participação no dia de orientação (Orientation Day) que coloca à disposição todas as informações sobre todo o processo de certificação e sistema de saúde australiano.
Portfólio
Nesta fase, os candidatos devem fornecer informações pessoais e de contato adicionais, bem como documentação de identificação e qualificação. É ainda preciso agregar ao processo as evidências e a documentação necessárias para apoiar a inscrição, tais como prova de identidade, o currículo académico, licença e histórico de emprego com os referentes documentos de apoio.
A seguir, assim que todos os documentos forem revistos e aprovados, o enfermeiro estrangeiro requerente recebe uma carta de encaminhamento da AHPRA.
Avaliação Baseada em Resultados
A Avaliação Baseada em Resultados (OBA) é um processo de avaliação em duas etapas: um exame de perguntas de múltipla escolha (MCQ) e um exame clínico estruturado objetivo (OSCE).
A primeira fase é uma avaliação cognitiva. É um exame MCQ, feito no computador, que é avaliado em centros de teste desta natureza. Os enfermeiros farão ainda o Exame de Licenciamento do Conselho Nacional para Enfermeiros Registados (NCLEX-RN).
O Conselho Nacional de Conselhos Estaduais de Enfermagem (NCSBN) desenvolve e administra o NCLEX-RN através dos centros de teste Pearson VUE, que existem na maioria dos países. Os candidatos têm que passar neste exame para puderem ser considerados para a segunda parte da OBA.
A taxa de inscrição do NCLEX-RN é de $200, mais uma taxa de agendamento internacional adicional de $150 ($350 no total), conforme indicado no site da NMBA.
OSCE
A segunda fase é uma avaliação comportamental sob a forma de um exame clínico estruturado objetivo (OSCE). O OSCE foi desenvolvido para avaliar se uma enfermeira ou parteira qualificada internacionalmente tem o conhecimento, as habilidades e a competência de uma enfermeira ou parteira australiana de pós-graduação. O exame é administrado pela AHPRA e é realizado na Adelaide Health Simulation, em Adelaide, no sul da Austrália.
A taxa a pagar pelo OSCE é de $4.000.
Os candidatos elegíveis que estão ainda localizados fora da Austrália só conseguirão uma vaga no RN OSCE se fornecerem comprovativo de Visto válido pelo menos 3 meses antes das datas programadas do exame.
Como ex-examinadora, Dawang refere que os cenários típicos num exame OSCE são em tudo idênticos aos cenários diários que os enfermeiros internacionais encontrarão nas suas secções nos hospitais australianos. É por isso que o desempenho e a prática são partes integrantes da preparação. As aulas preparatórias criam, sobretudo, a confiança e pensamento crítico necessários para se ter sucesso no exame.
Eu acho que quando se trata de preparação, os programas de revisão são muito úteis. Além disso, leia o manual da OSCE da AHPRA porque eles oferecem dicas a todos os candidatos, especialmente para os enfermeiros qualificados internacionalmente.
Sugere Dawang.
Depois dos enfermeiros candidatos passarem nos testes NCLEX e OSCE, podem finalmente fazer a sua inscrição no AHPRA e no NMBA.
As enfermeiras internacionais trazem um novo nível de experiências para dentro do hospital: cultura, língua e outros métodos e estratégias Source: GettyImages/Jetta Productions Inc.
Agora que já tem mais informação acerca do processo pelo qual qualquer enfermeiro certificado internacionalmente tem que passar para exercer a profissão na Austrália, oiça a entrevista com duas enfermeiras portuguesas, respetivamente Lina Videira (a exercer a profissão na Austrália) e Andreia Cardoso (que desistiu de ser enfermeira cá) que complementa este artigo. Para ouvir, clique na imagem de abertura desta peça.
Procurámos saber qual é a realidade profissional de Lina Videira e a situação atual de Andreia Cardoso, duas enfermeiras de carreira iniciada em Portugal.
Hoje, a vida de ambas deu uma grande volta. Lina finalizou o processo de certificação com sucesso e hoje exerce a profissão cá. Andreia viu-se obrigada a desistir do sonho por razões várias e considera que, "apesar da saudade da profissão" da qual sente falta até hoje segundo nos confessou, ser enfermeira já é carta fora do baralho.
Comecemos por Lina Videira, que está na Austrália há 10 anos, vive na Central Coast e trabalha já há alguns anos no Hospital de Gosford.
Lina passou por todo o processo de certificação que, segundo diz:
Já há 10 anos atrás era um processo stressante, burocrático, caro e longo.
Mas Lina não desistiu e lá conseguiu adquirir o seu certificado oficial de enfermeira na Austrália. Hoje não poderia estar mais feliz e, entusiasticamente, incentiva todas as enfermeiras portuguesas, brasileiras, timorenses, africanas... a tentarem a sua sorte. Diz Lina que:
o processo de certificação aqui vale ´1000%´ a pena porque, apesar do imenso stress e despesa, uma vez concluído é altamente compensatório ser enfermeira nos hospitais australianos.
Lina acrescenta ainda que “ser enfermeira na Austrália não tem nada a ver com ser enfermeira em Portugal”. E justifica a afirmação da seguinte maneira:
O ensino da enfermagem em Portugal é excelente, mas as condições de trabalho, em contrapartida, são péssimas e um enfermeiro trabalha que nem um mouro para ganhar pouco mais do que 7 euros/hora.
Mais, Lina garante que só aqui é que se sentiu protegida nos seus direitos, incentivada na sua formação profissional contínua e, realmente, valorizada pelo seu esforço diário ao serviço dos seus pacientes no hospital:
Apesar do ensino da enfermagem em Portugal ser mais profundo e prático do que aquele que é proporcionado aos alunos de enfermagem na Austrália, curiosamente depois é na Austrália que o nosso valor profissional é realmente reconhecido a todos os níveis.
A Austrália tem escassez de enfermeiras e parece valer a pena exercer a profissão aqui, quando comparadas as realidades australianas e portuguesa. Source: Getty Images
Se fosse enfermeira em Portugal, talvez tivesse desistido da profissão durante o pico da pandemia.
Aqui, em contrapartida, apesar das recentes manifestações nas ruas em que enfermeiros e parteiros reivindicaram por melhorias de salário e retificação das condições de trabalho - “que depois da pandemia fazem muito sentido já que o sistema de saúde precisa de melhorias” refere Lina; mesmo assim, os enfermeiros são valorizados dentro e fora dos hospitais.
Lina diz ainda que os enfermeiros na Austrália são carinhosamente tratados pelas pessoas na rua. E isso sabe bem no final de um dia extenuante de trabalho no hospital, com certeza.
Acrescenta ela que a comunidade australiana faz questão de agradecer e celebrar o esforço dos enfermeiros:
Nunca vi isto em Portugal, mas aqui a comunidade aproxima-se de nós porque nos vêem nos cafés e nos supermercados ainda com a farda do trabalho, e oferecem um café, perguntam como correu o dia, agradecem e desejam sorte para o turno da noite
Já para Andreia Cardoso, com quem também conversámos acerca desta matéria, ser enfermeira na Austrália é um sonho adiado, talvez para sempre:
Acabou por ficar para segundo plano, porque o processo de certificação das habilitações é muito dispendioso, altamente stressante, frustante e demorado. Um sonho tão complicado que com as despesas da vida de uma emigrante que chega à Austrália com dois filhos para criar e uma vida para começar, não deu para concretizar.
Confessa, Andreia.
Em Portugal, Andreia foi enfermeira cerca de 6 anos, primeiro no hospital de Tomar e mais tarde no de Vila Franca de Xira.
A ex-enfermeira chegou a Sydney em 2014 com o marido e dois filhos, e diz que se há algo que ainda hoje lhe custa é ter deixado a sua carreira para trás:
Tenho muitas saudades, confesso. E acho que nunca irei bem ultrapassar ter desistido da enfermagem.
Andreia queixa-se, sobretudo da falta de flexibilidade, modernidade e rapidez de processo por parte das entidades em Portugal que tratam da documentação necessária para anexar ao processo de creditação na Austrália, que diz também contribuir muito para tornar todo o processo ainda mais complicado e caro.
Acima de tudo, para Andreia a questão do custo do processo de creditação pesou muito na sua decisão: “Cheguei aqui com dois filhos em idade escolar e as nossas prioridades financeiras enquanto família não me permitiram continuar com o processo de creditação como enfermeira. Como residente temporária, na época, tive que fazer escolhas óbvias.”
Ainda chegou a trabalhar nos hospitais como ´blood coletor´ (a tirar sangue, como se diz na enfermagem em Portugal). Diz Andreia que
Blood colector é uma das profissões permitidas às enfermeiras internacionais não-certificadas na Austrália. E ainda pensei que pudesse ser relativamente fácil transitar de blood colector para enfermeira neste país, visto que é um país de reconhecida escassez em enfermeiros. No entanto, deparei-me como vários obstáculos e acabei por não fazer esta transição até hoje.
A vida acabou por levar Andreia para outros desafios e hoje dedica-se a uma outra atividade profissional no ramo da importação, a qual acumula com um part-time na área da nutrição, e não antevê o regresso aos hospitais como enfermeira de serviço.
Chega a uma altura na vida em que temos que nos abrir a outras oportunidades que surgem e às quais, depois de nos habituarmos, também acabamos por gostar.
Andreia aceitou a sua nova situação profissional com resiliência e até já sente algum prazer no que faz agora, olhando assim para a enfermagem de um novo ângulo:
Para ser sincera, hoje e num contexto de pandemia, dou por mim a sentir-me decepcionada com a forma como os profissionais de saúde são tratados. É uma profissão altamente desgastante e na qual eu questiono até que ponto vale a pena estar a investir tempo e dinheiro, da minha vida pessoal e familiar.
Sobre todos estes pontos, e muitos outros, acerca da realidade destas duas enfermeiras portuguesas residentes na Austrália, oiça a entrevista áudio onde muito mais é abordado e explicado.