O batom vermelho dá cor à tristonha eleição presidencial portuguesa

Caetano Veloso

Caetano Veloso Source: MAURO PIMENTEL/AFP via Getty Images

A usar batom vermelho, o compositor brasileiro Chico Buarque deu as caras nas manifestações virtuais do pleito em Portugal contra comentários machistas do candidato André Ventura


São vários os eleitores portugueses, mulheres e homens, que neste domingo se dirigem aos locais de voto da eleição presidencial com os lábios pintados com batom vermelho vivo.

Esta atitude deu cor à campanha mais cinzenta, menos visível, mais apagada de alguma eleição portuguesa desde a instalação da democracia em 1974.
Por causa da COVID-19, com Portugal em estado de catástrofe (274 mortos e mais de 15 mil contágios só nas 24 horas antes deste domingo de eleições), a campanha eleitoral foi miserável, na prática, inexistente: de conteúdo, de forma, de assistência, de clareza de argumentos, de confrontos de ideias e de personalidades.

Todos os assuntos principais (educação, saúde, economia e emprego, por exemplo) ficaram fora dos debates, dominados em exclusivo por questões da pandemia, aliás, com muita tática demagógica de exploração da tensão entre as pessoas com dever geral de permanência em casa.

O superfavorito Marcelo Rebelo de Sousa, com reeleição anunciada, na prática nem fez campanha, limitou-se a participar nos debates 2 a 2 entre os 7 candidatos e em dois debates entre todos.
O curso disparado dos acontecimentos da pandemia levou a que Marcelo estivesse sempre com o fato de presidente, mesmo nos debates em que tentou suscitar outros temas.

Acontece que o estreante candidato da direita mais extrema, André Ventura, no palco de uma sessão com apoiantes, resolveu referir-se aos adversários e, ao comentar a eurodeputada Marisa Matias, candidata do Bloco de Esquerda, mulher que por ser de diálogo cordial, suscita simpatias na cena portuguesa, denegriu a opção estética dela, criticou a cor vermelha do batom que, de facto, costuma usar para pintar os lábios.

Ventura fez esse comentário numa noite e, na manhã seguinte, as redes sociais estavam cheias de imagens de artistas (Marisa tem muitos dos apoiantes entre setores das artes) com os lábios pintados de vermelho. Homens e mulheres.

Mas o protesto contra a declaração sexista de Ventura depressa disparou. Nesse mesmo dia, outra candidata, a socialista Ana Gomes, diplomata determinante no processo de independência de Timor, apareceu em público com os lábios habitualmente com cor discreta, desta vez, em cor vermelho vivo.

Nas ruas, muita gente apareceu com lábios em cor vermelho vivo.

Os lábios pintados com a cor vermelha tornaram-se o acontecimento ativo da campanha, com forte mobilização do campo que se opõe ao ultranacionalismo de Ventura.

“Este movimento do batom vermelho está a ser uma das melhores coisas das redes sociais nos últimos tempos”, escreveu a jornalista Helena Ferro Gouveia no Twitter. “Independente de sermos de direita ou de esquerda ou da candidatura presidencial que apoiamos, ninguém tem o direito de dizer a [uma] mulher como se vestir, como pintar os lábios.”

Uma frase que se tornou slogan: “O machismo tem medo de batom vermelho.”

O movimento lábios vermelhos ainda cresceu mais quando o cantor, compositor e intérprete brasileiro Chico Buarque de Hollanda, muito querido em Portugal, em todos os setores políticos, apareceu num vídeo, juntamente com a namorada, ambos com os lábios pintados de vermelho, num gesto de contestação do comentário grosseiro de Ventura sobre Marisa.

A campanha presidencial até então muito discreta, assou a ter o batom vermelho a dar-lhe cor.

A hashtag #vermelhoemBelem (Belém é o palácio presidencial português)  tornou-se muito popular, surgiu como tema nos media europeus e, tal como Chico Buarque, várias figuras europeias, designadamente ministros de Espanha, Bélgica e Luxemburgo, também aderiram ao batom vermelho.

Marisa, muito ativa deputada no Parlamento Europeu, redatora da diretiva sobre os cuidadores de pessoas com dificuldades físicas ou mentais, já tinha concorrido às eleições presidenciais portuguesa de há 5 anos, recolhendo então 10% dos votos que a colocaram em 3º lugar nas preferências.

Nessa eleição de 2016, os portugueses elegeram Marcelo com 52% dos votos. Oriundo do PSD, assumindo do centro-direita social-cristão, Marcelo fez coabitação perfeita com o governo socialista e, agora, grande parte do eleitorado socialista, incluindo o primeiro-ministro Costa, apoia-o. As sondagens dão-lhe 60% das intenções de voto.

Uma ala mais à esquerda dos socialistas aposta em Ana Gomes, que ronda os 15% nas pesquisas.

O direitista Ventura surge com as expectativas pelos 10% e a esquerda à esquerda dos socialistas também ronda os 10%, divididos por Marisa Matias e João Ferreira.

Porém, os analistas políticos admitem que o recolher obrigatório pela pandemia leve muita gente a não usar o livre trânsito para sair a votar. Se a abstenção for muito alta, as percentagens podem sair muito alteradas, embora sem pôr em causa a reeleição do popular presidente dos afetos, Marcelo Rebelo de Sousa.

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