A seleção brasileira feminina de futebol está em Sydney, na Austrália, para dois amistosos contra a seleção feminina australiana. No primeiro jogo, no sábado, 23 de outubro, no CommBank Stadium, as Matildas superaram as guerreiras do Brasil por 3x1. O segundo jogo vai ser realizado nessa terça-feira, 26 de outubro.
Aproveitamos a passagem da seleção brasileira pela Austrália e convidamos a Marta, melhor jogadora de futebol do mundo de todos os tempos, para um bate-papo.
Agradecimento à torcida
Marta já começou a conversa agradecendo a torcida que compareceu ao jogo. Ela disse que “é muito especial estar na Austrália e poder de alguma maneira trazer esse calor humano brasileiro para as pessoas que moram em Sydney.”Sobre ter sido muito aplaudida pela torcida brasileira quando entrou no jogo, no segundo tempo da partida, Marta diz que receber esse carinho é algo a motiva constantemente. “Foi um momento especial não só para todos que ali estavam mas especialmente para mim e, dentro do possível, procurei retribuir todo esse carinho dentro de campo. Espero que no próximo jogo a gente possa ter mais oportunidades e vivenciar mais uma vez esse contato junto à torcida, junto ao povo brasileiro.”
Jogadoras da seleção acenam para a torcida brasileira presente no Commbank Stadium em Sydney, no sábado, 23 de outubro, no amistoso contra as Matildas. Source: Thais Magalhães/CBF
Importância do jogo, apesar da derrota
Após a derrota por 3x1 diante das Matildas, a técnica da seleção brasileira, Pia Sundhage, disse que optou por colocar jogadoras novas em campo e fazer várias substituições. Ela declarou que ficou feliz com o desempenho das jogadoras e que há muitas coisas para aprender desse jogo, o que é um bom começo.Marta ressalta que para as jogadoras, encarar esses jogos é um desafio enorme porque não é uma viagem fácil de fazer, seja para aquelas que estavam no Brasil, ou para as que, como ela, estavam nos EUA. Ela diz que “mesmo com tantos empecilhos, a gente conseguiu jogar de igual para igual com uma equipe bem qualificada, que é a Austrália, na casa delas, com a maioria da torcida a favor delas.”
Marta durante o primeiro de dois amistosos disputados contra as Matildas, no sábado, 23 de outubro, em Sydney. Source: Thais Magalhães/CBF
Segundo Marta, ter tido essa oportunidade de ter várias meninas, vários nomes novos que hoje fazem parte da seleção, em ação em um desafio tão grande como esse, é algo a ser aplaudido. Para ela, essas meninas tem muito o que evoluir e tem muito o que aprender, “e só passando por situações como essa que a gente vai realmente buscar um futuro mais promissor para todas nós na seleção.”
Coletividade x Vaidade
Um momento que chamou a atenção no jogo de sábado foi quando a capitã e artilheira das Matildas, Sam Kerr, cabeceou a bola para Clare Polkinghorne, que fez o primeiro gol da partida. Os comentaristas da partida na tv australiana destacaram que essa atitude da estrela das Matildas, de tocar a bola para a companheira de time fazer o gol, sendo que ela mesma poderia ter tentado marcar para a equipe, mostra que ela não é egoísta. Adjetivo que também não combina nem um pouco com Marta, aclamada por abrir caminhos para as novas gerações, fazendo da sua carreira algo muito além da realização pessoal.Marta justifica dizendo que joga um esporte coletivo, que na opinião dela o primeiro pensamento tem que ser a coletividade, o trabalho em conjunto. Saber que não é possível chegar a lugar nenhum sozinha. “Eu busco usar o esporte que pratico para espalhar oportunidades para todos, igualdade para todos.”
Marta ao lado da artilheira das Matildas, Sam Kerr, no amistoso de sábado, 23 de outubro, em Sydney, contra a seleção feminina australiana. Source: Thais Magalhães/CBF
Para ela, é preciso deixar de lado o egoísmo, a vaidade, e ela acredita que muitas atletas fazem isso com êxito. “O que a gente procura fazer é passar para todas que quando se trata de um trabalho coletivo, todas têm que estar na mesma página, tem que estar pensando da mesma maneira, tem que trabalhar em conjunto para que assim o trabalho seja vitorioso para um todo.”
Marta diz que sempre teve essa preocupação com o conjunto, não só das equipes que integrou mas também da sociedade em que vive: “Eu sempre procurei trabalhar muito esse lado coletivo e lutar por igualdade, empoderamento, oportunidades para todos. Eu procuro fazer isso desde que me entendo por gente. Eu escolhi esse esporte como um meio de sobrevivência mas também uma maneira de mostrar ao mundo que com oportunidades e respeito a gente pode criar um ambiente saudável para todos."
Eu escolhi esse esporte como um meio de sobrevivência mas também uma maneira de mostrar ao mundo que com oportunidades e respeito a gente pode criar um ambiente saudável para todos.
Igualdade de gênero no futebol
Foi ao jogar contra a Austrália na Copa do Mundo de 2019 na França, que ao fazer o gol de pênalti que a tornou a maior artilheira em Copas do Mundo na história, Marta apontou para a chuteira que estava usando, sem logo de nenhuma grande marca esportiva, por não ter recebido uma proposta de patrocínio à altura do seu futebol, mas com o símbolo da campanha ‘Go Equal’, pela igualdade de gênero no esporte.
Na Austrália e no Brasil, houve nos últimos anos algumas iniciativas voltadas para a equiparação de condições de trabalho para as seleções feminina e masculina de futebol dos dois países.
Na Austrália, a equiparação de salário de homens e mulheres que atuam nas seleções nacionais foi anunciada em 2019. Em 2021 foi adotado um acordo coletivo de trabalho com igualdade de locais de treino, condições de viagem e acompanhamento médico, por exemplo.
No Brasil foi anunciada em 2020 a igualdade de pagamento de diárias e premiações para as seleções feminina e masculina.
Sobre isso, Marta espera que muitas outras empresas e instituições do esporte ou qualquer outra área de trabalho também tomem esse tipo de iniciativa, de realmente dar oportunidades para todos.
Marta diz que “Dar oportunidade não é simplesmente dar cotas para mulheres, para negros. Queremos oportunidades para todos, para que tenhamos igualdade. Igualdade não é 50% homens e 50% mulheres, nem 50% brancos e 50% negros. Igualdade é você não ter essa dificuldade tão grande em exercer algumas atividades por viver em um mundo onde ainda há machismo e preconceito.”
Igualdade é você não ter essa dificuldade tão grande em exercer algumas atividades por viver em um mundo onde ainda há machismo e preconceito.
Conquistas apesar das dificuldades
Ela também diz que iniciativas como as da CBF e a da Federação Australiana de igualdade nas condições de trabalho não bastam mas são importantes. “A equipe feminina da Austrália hoje é muito forte. É uma equipe bem qualificada, que vem mostrando bom desempenho nas competições.” E completa: “a gente precisa dar esses exemplos, a gente precisa continuar incentivando para que não fique só entre dois ou três países, e sim vários países, várias empresas em vários diferentes setores.”
Para Marta, o preconceito e as dificuldades enfrentadas pelas jogadoras de futebol acabam sendo um empecilho para que o desenvolvimento e a visibilidade dos times femininos dos clubes e da seleção feminina sejam iguais às equipes masculinas. Para ela, é preciso mais investimento e reconhecimento financeiro e cultural para os times femininos.Marta destaca que mesmo com essas dificuldades, a seleção brasileira feminina é uma equipe premiada, com resultados expressivos, com duas pratas em Olimpíadas, um Mundial e um vice-campeonato mundial.
Marta diz que mesmo com as dificuldades enfrentadas, a seleção feminina é uma equipe premiada com resultados expressivos: duas pratas em Olimpíadas e um Mundial Source: Thais Magalhães/CBF
“Então a gente sabe que tem potencial para ter uma equipe de alto nível, de ponta, e conquistar os nossos objetivos maiores que são os títulos mais expressivos, como Olimpíada e Mundial. Mas precisamos continuar lutando para combater essas dificuldades que ainda existem”, conclui Marta.
A gente tem potencial para ter uma equipe de alto nível e conquistar os títulos mais expressivos. Mas precisamos continuar lutando para combater essas dificuldades que ainda existem.
“Não basta ter talento”
Ao final do jogo entre Brasil e França, em que o time francês venceu por 2x1 e as guerreiras do Brasil foram eliminadas da Copa do Mundo de 2019 nas oitavas de final da competição, Marta deu um depoimento emocionado, com lágrimas nos olhos, em que disse que preferia estar sorrindo ou chorando de alegria, e que era preciso “chorar no começo para sorrir no fim.”
Ela depois explicou que queria conscientizar as novas gerações de jogadoras de que só o talento não é suficiente. Que é preciso muito treino, foco e dedicação para alcançar bons resultados.
Ao falar sobre aquela declaração, Marta diz que “o que cabe a uma atleta é se cuidar, estar bem fisicamente, mentalmente, e estar preparada para a situação. Não apenas colocar a camisa do clube ou a camisa da seleção e se contentar com isso."
O que cabe a uma atleta é se cuidar, estar bem fisicamente, mentalmente. Não apenas colocar a camisa do clube ou a camisa da seleção e se contentar com isso.
Para a melhor jogadora do mundo, “você tem que ter a ambição de chegar a um clube e fazer história, chegar a uma seleção e fazer história, deixar o seu legado. E mostrar que é possível alcançar os seus sonhos através da perseverança e da determinação.”
Marta conta que um dos atletas que mais a inspira é o jogador português Cristiano Ronaldo, que ela vê que se dedica e trabalha muito para conquistar o sucesso.
Ela explica: “O Cristiano tem talento, mas não é um talento comparado ao talento do (jogador argentino) Messi, por exemplo, que é um cara que já faz as coisas com mais facilidade. Porém, ele supera isso pela dedicação que tem no trabalho, pela perseverança, pela confiança que ele tem nele mesmo e acredita que é possível realizar tais situações e obter o sucesso.”
Trabalhar duro e não se acomodar
Sobre trabalhar duro para se manter bem no esporte, Marta diz que não está na seleção há 20 anos porque é amiga de todo mundo, mas pelo trabalho que vem desempenhando há muitos anos.
Marta diz que volta e meia perguntam para ela qual é o sentimento de ter sido eleita por seis vezes a melhor jogadora do mundo pela FIFA. “A primeira vez que eu ganhei, não me deslumbrei. Eu já fiquei pensando o que teria que fazer para ganhar novamente o título. Eu já saí da cerimônia com aquele troféu na mão pensando que o que era importante fazer para sentir aquela emoção e aquele clima novamente.”
A primeira vez que eu ganhei, não me deslumbrei. Eu já fiquei pensando o que teria que fazer para ganhar novamente o título.
Ela diz que foi assim que construiu a carreira até aqui. Não se acomodando e não permitindo que as conquistas durante a trajetória a deixassem em uma situação de conforto.
Marta teve que ser muito forte e persistente para enfrentar algumas dificuldades no seu caminho. Ainda criança, foi proibida de participar do único campeonato de futebol da região onde morava porque meninas foram excluídas. Por ser filha de uma mãe solo de cinco filhos, ela teve que trabalhar muito para juntar dinheiro e comprar a passagem de ônibus que a levaria, aos 14 anos de idade, de Dois Riachos, no sertão de Alagoas, ao Rio de Janeiro, para fazer um teste no Vasco, onde teve início sua carreira como jogadora.
Mulheres fortes
Sobre a mãe, dona Tereza, Marta diz que teve o privilégio de ter nascido de uma mulher forte e guerreira. Ela também destaca que no decorrer da vida conheceu pessoas especiais como a companheira, a também jogadora norte-americana Toni Deion, que foi diagnosticada com câncer de mama em 2019 e teve que se submeter a uma mastectomia dupla e reconstrução mamária. Marta diz que a história de Toni também é muito inspiradora e que ela demonstrou muita força para enfrentar a doença.
“Isso (estar cercada de mulheres fortes) sem dúvida é algo que me motiva constantemente, que me mantém firme e forte, buscando sempre, de alguma maneira, servir a sociedade, não só como atleta mas com exemplos de vida a exemplos de perseverança”, explica Marta.
Ela esclarece que não tem a mínima intenção de “se fazer de coitadinha” ou achar que todo mundo tem que passar por situações difíceis para vencer na vida. “Se fosse assim, eu não lutaria por melhorias, não cobraria uma situação melhor para as atletas com investimentos, campeonatos, oportunidades.”
Marta diz que histórias de dificuldades e superação precisam ser espalhadas para que a pessoas que tem uma facilidade maior de conquistar as coisas deem o devido valor e sejam gratas por isso.
Luta por conquistas para as próximas gerações
Ela fala que, sempre que pode, conta a sua história e fala da batalha constante para exercer uma profissão que, na época em que começou, era uma profissão 99% masculina, o que a fez ter que encarar muitos obstáculos.
Marta diz que hoje já não é tão difícil, que a sociedade atual é mais flexível, e está sempre procurando mais informações. Então muita coisa mudou. Mas para que isso acontecesse, muita gente teve que lutar. E ela sabe da importância que teve e ainda tem nessa luta: “Eu fui uma dessas pessoas a usar minha história, minha vontade de vencer e minha garra para construir um futuro promissor para as próximas gerações.”
Eu fui uma dessas pessoas a usar minha história, minha vontade de vencer e minha garra para construir um futuro promissor para as próximas gerações.
Ao final da entrevista, a rainha Marta, essa atleta gigante e ativista fundamental na luta pela igualdade entre mulheres e homens no esporte e fora dele, reforça a seu sentimento genuíno de carinho pela torcida brasileira ao convidar aqueles que estão em Sydney a comparecer ao Commbank Stadium para o segundo amistoso contra a seleção australiana nessa terça-feira, 26 de outubro, e explica a razão do convite: “para nos apoiar, nos dar essa energia e nos manter motivadas nos 90 minutos, para que a gente possa fechar esse trabalho aqui na Austrália bem e voltar felizes para os nossos clubes e famílias. Vamos seguir incentivando, empoderando, mostrando para todos que é possível. É possível quando você acredita e luta por um ideal.”