*A pedido da entrevistada seu nome verdadeiro foi omitido nesta reportagem para sua proteção.
Valquíria conheceu seu ex-marido australiano em 2017 e largou tudo no Brasil para viver na Austrália com quem acreditava ser o amor da sua vida. "No começo ele era o namorado perfeito, abria a porta do carro pra mim e fazia de tudo," recorda.
Mas, depois de se casarem as coisas mudaram e o ex-marido começou a apresentar um comportamento agressivo nunca antes visto por ela. "Eu não estava aguentando mais e falei que eu ia embora. Foi quando ele começou a me bater. Peguei minhas coisas, coloquei no carro e fui embora."
Valquíria prestou queixa na polícia contra o ex-marido e decidiu abrir publicamente seu caso nas redes sociais para ajudar outras mulheres vítimas de violência doméstica.
"A gente não precisa ficar em um relacionamento abusivo. Quando tem violência doméstica, a gente pode provar para a imigração e ficar na Austrália [com o visto permanente]"
Violência doméstica é o tema da nova série da TV SBS "See What You Made Me Do" disponível na .
Na Austrália, uma em cada quatro mulheres são vítimas de violência por parceiro íntimo, enquanto que uma em cada 11 mulheres são vítimas de violência por um estranho.
Violência doméstica pode acontecer com qualquer mulher. Mas a atitude das pessoas em relação a ela está mudando, com mais e mais mulheres denunciando o abuso.
A pesquisa nacional de Atitudes da Comunidade em Relação à Violência contra as Mulheres (NCAS) é a pesquisa mais antiga do mundo sobre as atitudes da comunidade em relação à violência contra as mulheres.
De acordo com a NCAS a maioria dos australianos (72%) sabe que a violência contra as mulheres é comum. Em 2017, 81% dos australianos reconheceram que as mulheres são mais propensas que os homens a sofrerem danos físicos por violência doméstica.
Abuso velado: australianos concordam que certos comportamentos são uma forma de violência contra a mulher (Fonte: Pesquisa NCAS 2009-2017)
Source: Source: NCAS Summary Report, p. 43.
Existem vários serviços disponíveis para pessoas que estejam sofrendo violência em casa. Se você, ou alguém que conhece, esteja passando por isso, entre em contato com:
Lifeline Australia – 13 11 14
1800 respect – 1800 737 732
Relationships Australia – 1300 364 277
Mensline – 1300 78 99 78
Kids Helpline – 1800 550 1800
Safe Steps – 1800 015 188
Confira abaixo entrevista completa:
SBS – Por que é importante contar sua história agora?
Valquíria – Geralmente as mulheres se calam, por ficarem intimidadas, porque a gente não pode medir força com um homem. Eu várias vezes fico sem dormir, às vezes eu fico com medo quando estou andando na rua, mas eu não faço com que isso me deixe de lutar contra a agressão contra mulheres. Se a gente conquistou alguma coisa até agora é porque no passado as mulheres fizeram isso. A gente tem que continuar, a gente não tem que ter vergonha, a gente tem que se expor mesmo, ir na polícia e denunciar para que sejam tomadas as medidas cabíveis para que isso não aconteça mais, porque isso realmente precisa acabar.
SBS – Como é que está sendo seu domingo, Valquíria?
Valquíria – Eu estou um pouco cansada, porque eu não dormi bem essa noite. A polícia me ligou ontem, dizendo que ele admitiu todos os crimes e pedindo para que eu retirasse a queixa. Como que se ele quisesse apenas me dar o visto de residência permanente e pedindo para eu calar a boca, mas a minha intenção não é a de ganhar um visto de residência permanente, e sim de que ele não agrida a mais ninguém, então a gente vai dar continuidade nesse processo.
SBS - Você não vai retirar a queixa?
Valquíria – Não. De jeito nenhum. Ele precisa parar, porque ele já é reincidente de um caso de agressão. Ele já agrediu uma brasileira anteriormente e provavelmente ela pediu para retirar a queixa, porque eu vi que ele foi condenado à prisão, mas ele só ficou preso por 3 dias. Sem contar o histórico policial dele que eu só descobri depois de casada. São duas páginas de histórico policial. Ele é uma pessoa que realmente precisa de uma punição, porque senão ele vai continuar fazendo isso.
SBS – Como é que começou seu relacionamento com ele?
Valquíria – Ele foi o melhor namorado do mundo. Começou em 2017. Fazia tempo que eu não amava ninguém. Ele foi tão bom para mim. Ele foi daquele tipo que abria a porta do carro para eu sair, me dave sempre flores, era muito gentil, era muito dócil comigo. Foi o melhor namorado do mundo. Tanto é que eu tinha um escritório de advocacia no Brasil e eu fechei para ficar com ele. Eu fechei tudo. Eu estudei muito no Brasil. Eu fiz duas pós-graduações em direito civil e eu joguei tudo no lixo para ficar com ele. Então, realmente foi uma pessoa que eu amei. Infelizmente, depois que nos casamos ele começou a me contar tudo, que ele tinha transtorno bipolar agressivo. E quando a gente teve juntar a ficha policial dele no site da imigração para dar entrada no meu visto de residência permanente foi daí que eu descobri que ele tinha um passado bem sombrio. Quando eu vi violência doméstica no histórico policial dele eu fiquei muito assustada, eu liguei para o meu melhor amigo, que mora aqui na Austrália também, e ele me disse que comigo isso não ia acontecer porque eu era calma e que comigo ele não iria fazer isso. Mas, aí fez. Daí eu fui tendo paciência com ele, depois ele me começou a tartar mal, começou a querer achar briga em qualquer canto, quando bebia no bar queria brigar com alguém, quando a gente estava viajando ele queria brigar com alguém no trânsito. Às vezes, ele parava para brigar com alguém no trânsito e dar um murro em alguém. Era horrível. Inclusive na casa dos meu amigos ele já tentou brigar com um amigo meu. Chegou uma hora que eu não estava mais aguentando. Qualquer discussão ele me chamava de “puta”. Ele sempre estava me xingando e xingando a mãe dele. Ele é bem verbalmente agressivo com o filho dele de 7 anos de idade. Eu não estava mais aguentando. Até que um dia eu disse para ele que não estava aguentando mais e que eu ia embora, daí ele começou a me bater.
SBS – Foi a primeira vez?
Valquíria – Não. Uma vez ele me deu um tapa no rosto não muito forte só para me dar um susto, mas não me machucou. Mas, eu lembro que eu liguei para a polícia e começou a me pedir desculpas e eu pedi para a polícia não vim mais . Outra vez eu estava também discutindo com ele sobre algumas coisas erradas que ele fazia, porque ele é muito desonesto e ele cuspiu na minha cara. Eu fiquei muito mal, eu fiquei dias chorando por causa disso.Eu pensava: “eu não acredito que eu estudei tanto na minha vida para passer por uma situação dessa”. Eu julgava muito outras mulheres. Eu me julgava muito forte e independente no Brasil, eu achava que eu nunca iria passar por uma situação dessa. Eu realmente só vim para a Austrália, porque valia a pena. Era um relacionamento com alguém que eu achava que me amava muito. E me enganei. A expectativa que eu tinha era a de que ele voltasse a ser aquela pessoa. Eu lembro que foi quando eu li depoimentos na internet de mulheres que sofriam agressão e elas falavam que o problema é que a gente sempre fica na expectativa de que eles voltem a ser o que eles eram no início. Mas, na verdade eles estavam fingindo ser alguma coisa para conquistar a gente. Na verdade, eles sempre foram agressivos.
SBS – Foi assim que você tomou sua decisão?
Valquíria – Foi assim que eu comecei a acordar e a querer realmente sair do relacionamento. Comecei a perder o sentimento que eu tinha por ele. Comecei a enxergar que aquilo não estava sendo amor, estava sendo um relacionamento tóxico, que eu precisava sair daquilo.
SBS – Como foi crescendo os episódios de violência?
Valquíria – Eles começam a fazer coisas erradas, que não se faz em um relacionamento e que eles acham que a gente precisa aceitar. Como traição, por exemplo. A partir do momento que a gente não aceita mais e começa a discutir sobre isso, daí eles começam a ser agressivos verbalmente e nas atitudes também. Eu lembro uma vez em que eu estava com meus rins doendo muito e fui trabalhar e pedi para que ele ficasse ao lado do telephone, em caso de emergência. Ele simplesmente desligou o celular e foi andar de moto e dormiu fora e eu passei mal no trabalho. É uma provocação, uma agressão passiva. Quando eles sabem que não podem bater em você, eles começam a agir passivamente. Eles fazem coisas para que você fique chateada para criar o conflito. Depois disso ele começou a ser agressivo verbalmente e daí partiu para a agressão física. Foi daí que eu fui na polícia e dei parte de tudo. Eu falei tudo.
SBS – Como é que foi a primeira vez que ele bateu em você?
Valquíria – A gente estava viajando perto de Newcastle e daí eu disse que não estava aguentando aquele relacionamento e comecei a colocar as coisas dentro do meu carro para ir embora. Daí ele me empurrou na cama do hotel e começou a dar muitos tapas na minha cara. Ficou batendo sem parar. Ele não parava. Eu pedia muito para ele parar, mas ele não parava. Eu comecei a gritar por socorro e ninguém veio me socorrer. Eu achei impressionante isso. E ele tampou minha boca com a mão dele para eu parar de gritar e tampou também minha respiração. Foi muito desesperador. Eu nunca tinha passado por uma situação dessa e não sabia o que fazer, mas eu tive que reagir na hora. Eu lembro que eu dei um chute nele e foi daí que ele saiu, mas colocou o travesseiro no meu rosto para tentar me sufocar e deu um murro no meu rosto com o travesseiro. Inclusive quando eu falei isso com a policial ela me falou que provavelmente foi um crime premeditado, por que ele estudou como bater em uma mulher sem deixar marcas. Ele deu um murro e começou a sangrar a minha boca do lado de dentro e eu comecei a chorar muito. Eu perguntava “por que ele estava fazendo isso comigo?”. Não fazia sentido para mim a pessoa se casar, uma pessoa que deveria me proteger de tudo aqui na Austrália, porque ele é australiano, ele estava sendo o agressor. Eu só pedia para ele me deixar ir embora e daí ele me xingou e me disse que iria quebrar minha prancha de surfe. Eu surfo e ele sabia que era aquilo que eu fazia para relaxar quando eu estava nervosa. Eu disse para ele que se ele quebrasse minha prancha eu iria para à polícia, mas se ele me deixasse ir embora eu não iria à polícia, que foi a minha arma naquela hora. Daí ele me deixou ir embora e eu fui diretamente na polícia e contei tudo para a policial.
SBS – E foi feito também algum exame físico?
Valquíria – Ela tirou foto de tudo e ontem ela me ligou dizendo que ele assumiu tudo. Depois desse episódio eu nunca mais voltei para a casa. Ele foi detido e eu voltei para Sidney para pegar minhas coisas na casa dele. Eu contei tudo para a mãe dele e ela ficou muito impressionada. Ela perguntou o que tinha acontecido e eu disse que ele havia batido em mim e ela disse “por quê?”. Eu não acreditei que ela me estava perguntando aquilo. Não existe motive para uma pessoa bater na outra. Eu contei para ela que eu não estava mais aguentando e ela me interrompeu e perguntou se ele iria perder o emprego dele. Eu decidi não conversar mais com ela, porque ela também era uma pessoa doente. Eu consegui uma ordem judicial para ele não chegar perto de mim, não ligar, não mandar mensagem. Eu não quero mais ter contato com ele. Eu não quero ver ele nunca mais na minha vida.
SBS – Essa semana você decidiu abrir a história publicamente nas redes sociais. Foi a primeira vez que você decidiu falar abertamente sobre o assunto?
Valquíria – Na verdade quem sabia eram só meus amigos mais próximos. Minha família não sabe. Nem minha irmã que mora aqui e é casada com australiano sabe. Minha mãe no Brasil também não, porque eu tenho medo que ela possa ter um ataque do coração ao ouvir tudo. Até para os meus amigos que sabiam, eu evitava de contar muitos detalhes. Na primeira audiência do caso, ele pediu para remarcar, porque ele queria ser representado por um advogado, já que ele tem uma ficha criminal grande e a audiência foi adiada. E daí eu pensei em publicar minha história agora que eu já estou forte e consegui me estabilizar para ajudar a outras mulheres a saírem disso e vou procurar ajuda, porque eu quero que ele saiba que eu não estou intimidada por ele. E, provavelmente, ele soube. Depois que eu publiquei, ele assumiu todos os crimes. Ele sabia que não tinha para onde ir.
SBS – Qual foi seu sentimento de colocar isso para fora?
Valquíria – Eu tirei um piano das minhas costas. É uma sensação boa. Mas, eu fiquei abalada, porque depois que eu publiquei, várias meninas vieram conversar comigo. Teve uma que inclusive disse que estava passando por uma situação que não sabia se era violência doméstica. Ela disse: “ele colocou todas as minhas coisas no lixo, mas eu tenho pena dela, porque ele é doente”. E eu disse a ela: “olha, ele tem pena de você? Vai na polícia”. E, ela teve coragem e foi na polícia. O que me abalou foi ter ouvido de várias mulheres que isso era tão comum aqui na Austrália. Eu achava que isso era comum no Brasil.
A minha história encoraja. Depois que eu larguei dele a minha vida está maravilhosa. Eu pensei que eu nunca fosse conseguir, mas minha vida agora está do jeito que eu pedi a Deus. Eu queria encorajar as mulheres a terem essa coragem de sair da ilha para poder ver a ilha. Às vezes, a gente está em uma situação que não é boa. A gente não consegue ver, porque a gente está ali, mas quando sai você vê que aquilo não era vida.
SBS – Por que você acha que as mulheres que estão em situação de violência extrema não conseguem enxergar?
Valquíria – No meu caso, como ele é uma pessoa bipolar, tem depressão e vários outros problemas e eu amava meu ex-marido, eu procurava cuidar dele e achava que era uma responsabilidade minha fazer ele ser melhor. Eu ia com ele para a psiquiatra dele senão ele não ia. Eu tinha que lembrar o dia dele ir à psicóloga e às vezes eu ia com ele também. Inclusive, a psiquiatra dele me pediu para eu não dar mais uma chance para ele, mas eu acabei dando. Eu acordava antes do que ele, fazia o café da manhã dele, dava o remédio controlado dele. Eu sentia que era uma responsabilidade minha como esposa ajudar ele a ser melhor. Então, eu não o via como uma pessoa ruim. Eu via como uma pessoa doente. Só que às vezes a doença faz pessoa ruim. Se ele fosse doente, ele seria a mesma pessoa na frente de um policial. Ele é assim na frente de pessoas que são vulneráveis a ele. Inclusive, eu já conversei muito com a polícia de Manly. A investigadora disse que era incrível como ele conseguia disfarçar na frente de outras pessoas.
SBS – Você tem medo dele hoje?
Valquíria – Não é medo. É um receio que ele tenha esse surto de novo. Como eu passei por isso, eu não quero passar por isso novamente nunca mais na minha vida. Quando eu vejo uma moto igual a dele na rua eu já fico meio nervosa. Teve um dia que eu vi uma moto na frente da minha casa e ele não sabe onde eu moro, que é bem longe dele, mas eu fui dormir na casa dos meus amigos por medo. Às vezes eu fico com medo, mas eu estou com coragem suficiente para fazer com que nenhuma outra mulher passe pela mesma coisa. As pessoas saberem quem eu sou e quem ele é ajuda bastante. Muita gente se manifestou em relação a isso. Eu acho que ele ficou sabendo que eu publiquei isso, porque provavelmente chegou nele.
SBS – Qual é a sua situação em relação ao visto?
Valquíria – A gente não precisa ficar em um relacionamento abusivo. Quando há violência doméstica, a gente pode provar para a imigração e a gente obtêm o visto permanente e fica na Austrália.
Reportagem publicada pela primeira vez em Março de 2019.