Adhemar Ferreira da Silva foi o primeiro atleta bicampeão olímpico do Brasil, o primeiro atleta sul-americano bicampeão olímpico em eventos individuais, o recordista mundial do salto triplo cinco vezes e, como se não bastasse, foi ainda o primeiro atleta a quebrar a barreira dos 16m no salto triplo.
Acima de tudo, o atleta, que nasceu e viria a morrer em São Paulo (1927-2001), marcou o coração do povo brasileiro ao conquistar duas medalhas de ouro nas Olimpíadas de Helsinque, em 1952 – onde superou o recorde mundial no salto triplo, e nas Olimpíadas de Melbourne, em 1956.Foi na Austrália, quando deu o seu melhor na pista dos Jogos Olímpicos em Melbourne, que conheceu Rosemary Mula. Ela, apenas com 15 anos de idade na época, nunca mais esqueceu Adhemar:
Olimpíadas de Roma, 1960: Adhemar Ferreira da Silva Source: RDB/ullstein bild via Getty Images
A minha vida mudou no dia em que vi o Adhemar na pista, em Melbourne. Foi verdadeiramente inspirador.
Corria o ano de 1956 e Rosemary era uma adolescente "rebelde e zangada", tinha acabado de chegar à Austrália vinda de Inglaterra, depois de uma longa viagem de seis semanas de barco:
Vir para a Austrália era o 'adeus para sempre' a tudo o que eu conhecia, e a todos os que eu amava. Eu estava muito zangada com os meus pais e com o mundo. Foi muito complicado.
Vir para Down Under representava, sobretudo, o fim do percurso prometedor no atletismo que Rosemary tinha traçado para si mesma, na Inglaterra, desde criança. Ela adorava o esporte e, apesar de ter experimentado outras modalidades, Rosemary tinha um fascínio e grande talento para o atletismo.Mas para ajudá-la na adaptação ao novo país, o seu pai comprou-lhe um bilhete para os primeiros Jogos Olímpicos da sua vida, que aconteceram poucas semanas após a chegada da família a Melbourne. Mal sabia o pai que a vida de Rosemary iria mudar para sempre naquele dia.
A votação foi em 2009 e Rosemary estava presente, como voluntário da equipa de candidatura Rio de Janeiro 2016 - ao centro, esquerda na foto. Source: Sourced/Rosemary Bula
Quando viu Adhemar, virtuoso na pista de atletismo - o primeiro homem negro que Rosemary viu na sua vida – a adolescente soube que aquele momento traçaria o seu destino e que o mesmo, com toda a certeza, passaria pelo atletismo:
O Adhemar falou comigo e com o grupo de crianças que estavam comigo a gritar por ele 'Da Silva, Da Silva', no final da competição. Lembro-me que nos disse que tínhamos que estudar, ouvir os nossos pais, treinar bastante se queríamos ganhar medalhas como ele.
Depois deste encontro, Rosemary passou muitos anos sem ver Adhemar.
Pelo caminho começou o seu percurso universitário, casou, fez uma carreira como professora em Camberra e, assim, a vida acabou por afastá-la do atletismo por um tempo.
Até que um dia, por mero acaso, Adhemar da Silva apareceu de novo no seu horizonte.
Mas desta vez, para nunca mais perder Rosemary de vista, nem ela a ele:
Muitos anos mais tarde, as palavras de Adhemar marcaram-me profundamente. Agarrou no meu rosto entre as suas mãos e disse-me: você não é atleta, mas tem que arranjar uma maneira de continuar no atletismo... de outra forma.
Uma forte e duradoura amizade ligou Rosemary e Adhemar por décadas, e viriam a encontrar-se e a conviver com as famílias um do outro ao longo dos anos, já com Rosemary a trabalhar como voluntária nos Jogos Olímpicos.Para ela, Adhemar sempre foi uma referência:
Rosemary e Wilfred Mula. Juntos em Pequim, onde Rosemary acompanhou as comitivas olímpicas de Tonga e Kiribati. Source: Sourced/Rosemary Mula
O Adhemar era uma inspiração, uma pessoa com um coração enorme. Um homem único que, vindo de uma família muito humilde, acabou por aprender 5 línguas e transformar a vida de muita gente ao seu redor
Poliglota, Adhemar também estudou Escultura, Educação física, Direito e Relações Públicas. Foi inclusive adido cultural na embaixada brasileira na Nigéria, colunista e comentador desportivo.
Além de um dos atletas brasileiros mais dotados de todos os tempos, Adhemar da Silva também era talentoso na guitarra e até no teatro, onde chegou a ser ator na peça “Orfeu da Conceição” de Vinicius de Moraes e no filme italiano “Orfeu Negro” que venceu o Oscar de melhor filme estrangeiro e a Palma de Ouro no Festival de Cannes.
Rosemary foi sempre acompanhando tudo isto daqui da Austrália, principalmente depois de ter se aposentado e reencontrado o esporte, o atletismo e a adrenalina dos Jogos Olímpicos já como voluntária responsável por receber as comitivas dos diferentes países no aeroporto e encaminhá-las para os seus hotéis.
Esta foi a grande aventura que a ex-atleta e ex-professora viveu por várias temporadas dos Jogos Olímpicos, em vários países diferentes:
Assim que me aposentei tornei-me voluntária nos Jogos Olímpicos. Foram anos maravilhosos, onde me encontrei com o Adhemar e a Comitiva Olímpica Brasileira.
No dia em que Adhemar morreu [aos 73 anos, de ataque cardíaco], Rosemary recebeu uma chamada telefônica no meio da noite: “Foi o meu marido [Wilfred Mula] que atendeu. Eu tive um mau pressentimento, dado que só recebemos chamadas tão tardias quando há más notícias. Foi um choque para mim.”Rosemary sentiu que a história e o legado de Adhemar não podiam cair no esquecimento.
Catar, 2019: Rosemary levou o sapato de Adhemar ao Departamento do Património Mundial do Atletismo. Sebastian Coe (e), e o presidente do COI, Thomas Bach (d) Source: Getty Images Europe
No dia em que Adhemar morreu, eu e o meu marido decidimos que tínhamos que fazer alguma coisa para celebrar a vida dele, homenageá-lo e dar continuidade ao legado desportivo dele aqui na Austrália – o lugar onde ele ganhou uma das suas medalhas olímpicas.
Pouco depois da morte do atleta, a filha de Adhemar enviou o tênis com que o seu pai foi campeão olímpico em Melbourne para Rosemary.
Inspirada pelo gesto, Rosemary iniciou o projeto de uma bolsa de estudos para crianças dotadas no atletismo, que mantém até ao dia de hoje e no âmbito do qual usa as sapatilhas como metáfora do trabalho árduo do atleta brasileiro:
“Eu e o meu marido, depois de ouvirmos na rádio que a Westfields Sports High School, com alunos mais vulneráveis, precisava de dinheiro para proporcionar a participação destes alunos em provas desportivas, olhamos um para o outro e decidimos que ali estava uma oportunidade de fazermos alguma coisa em nome do Adhemar”.
Mal ouvimos que a Westfields Sports High School precisava de apenas $300 dólares para levar os seus alunos mais talentosos no atletismo a competirem pela Austrália, decidimos, não só pagar a quantia total, como criar a Adhemar Ferreira da Silva Memorial Scholarship.
E assim foi.
Rosemary e Wilfred têm ajudado dezenas de alunos desde então, incluindo Dani Samuels and Fabrice LaPier que, anos depois de terem sido agraciados com a Adhemar Ferreira da Silva Memorial Scholarship, acabaram por sagrar-se campeões do mundo nas suas disciplinas – respectivamente, lançamento do disco e salto em comprimento.
Mas sobre a sua história pessoal; a sua ligação inspiradora com Adhemar ao longo da vida de ambos; a Adhemar Ferreira da Silva Memorial Scholarship; a forma como Adhemar acolheu e envolveu Rosemary no desporto e culturas brasileiras; a sua opinião acerca de como o desporto une toda a gente independentemente da etnia, cor, status ou situação financeira... ouça tudo na nossa entrevista completa com Rosemary Mula.
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